Relações entre autoficção e metateatro: um exemplo na dramaturgia brasileira

Relationship between autofiction and metatheatre: one example in brazilian dramaturgy

Ricardo AUGUSTO DE LIMA

Universidade Estadual de Londrina, Brasil

ricardodalai[at]gmail.com

Impossibilia. Revista Internacional de Estudios Literarios, Nº 13, páginas 106-130 (Mayo 2017) ISSN 2174-2464. Artículo recibido el 19/12/2016, aceptado el 05/04/2017 y publicado el 30/05/2017.

Resumen: Este artigo tem como objetivo analisar a existência de um teatro autoficcional na dramaturgia contemporânea. A partir do neologismo de Doubrovsky, a questão sobre a impossibilidade de um teatro autobiográfico parece resolvida na medida em que o discurso não se apresenta como autobiográfico; tampouco se percebe sua total ficcionalidade devido à explícita ambiguidade do discurso. Seja por meio do texto ou por recursos cênicos, elementos autobiográficos e empíricos são incluídos no cenário ficcional, estabelecendo um efeito metateatral. A fim de ilustrar esse possível teatro autoficcional, utilizamos um exemplo da dramaturgia contemporânea que fricciona real e ficcional. Tal fricção questiona não o que é real e o que é ficcional, mas o que é teatro e, consequentemente, o que é o sujeito.

Palavras-chave: teatro, autoficção, teatro autoficcional, metateatro, teatro contemporâneo

Abstract: This article aims to analize out the existence of an autofictional theatre in contemporary dramaturgy. From the neologism of Doubrovsky, the issue about the impossibility of an autobiographical theater seems resolved as the speech is not presented as autobiographical; nor does it realize its full fictionality due to explicit ambiguity of the speech. Either through the text or by scenic resources, autobiographical and empirical elements are included in the fictional scenario, setting a metatheatrical effect. In order to illustrate this possible autofictional theatre, We use a example of contemporary dramaturgy rubbing real and fictional. Such friction asks what is real and what is fictional, but what is theater and, consequently, what is the subject.

Keywords: theatre; autofiction; autofictional theatre; metatheatre; contemporary theatre

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Nos últimos anos, se viu negada a afirmação de Patrice Pavis no verbete « teatro autobiográfico » de seu célebre dicionário, segundo o qual trata-se de um gênero impossível e pouco representado, pois « o teatro é uma ficção presente assumida por personagens imaginários que diferem do autor e têm outras preocupações além de contar sua vida » (2008: 375). O dicionário1 se refere à definição de autobiografia dada por Philippe Lejeune em 1975: « narrativa retrospectiva em prosa que alguém faz de sua própria existência » (2008: 33), na qual autor, narrador e personagem possuem a mesma identidade nominal. A impossibilidade do gênero provém, portanto, da impossibilidade desse homonimato, visto ser, a partir da concepção aristotélica de poesia, um gênero no qual a narrativa se faz por meio de um mediador, isto é, o narrador.

Ora, enquanto temos na autobiografia a relação Autor = Narrador = Personagem, no teatro temos o agravante Ator, que equivaleria à equação Autor = Ator = Personagem. Entretanto, o Ator, diferente do Narrador, é uma figura real, uma pessoa ali, presente, falando no aqui e agora do palco. Por outro lado, e ao mesmo tempo, é um signo, um personagem ficcional, que, mesmo possuindo nomes e referenciais, está em um presente ficcional, textual e cênico, pois não podemos nos esquecer que a duplicidade do pacto de referencialidade no teatro é que tudo no teatro é real e fictício ao mesmo tempo, de forma indistinguível.

José Garcia Barrientos (2014: 132) afirma que, ao contrário da narrativa, não é a primeira igualdade (Au=N, na prosa; Au=At, no drama) que está o problema, mas na segunda equivalência na equação teatral (At=P), pois trata-se de uma pessoa real e de outra fictícia. Além disso, o Autor é uma figura por demais problemática no campo dos estudos literários e uma má-abordagem é sempre prejudicial.

De forma similar, o Ator é uma figura emblemática. Além de ser um corpo real diante do espectador, ele represente uma entidade que se torna elo entre o Autor, figura central ao se tratar de pactos de referencialidade ou ficcionalidade, e o personagem, centro, mais que na narrativa, da ação dramática, na qual « as personagens constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser através delas » (Prado, 2005: 84). Diante do público, dispensando a figura do narrador, o Personagem é soberano, e sua história é dada « como se fosse de fato a própria realidade », concebendo uma obra mais persuasiva pois, « frente ao palco, em confronto direto com a personagem, [as pessoas] são por assim dizer obrigadas a acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos » (Prado, 2005: 85).

Com tantas contradições, ao tratar dos vários tipos de escritas si, Vincent Colonna é categórico:

[...] il n'existe pas d'écriture de soi dramatique. D'une manière générale, le régime discursif dramatique, l'écriture théâtrale, paraît peu propre à l'expression de la « vérité subjective », pues « la simple traduction scénique d'états de choses ou de personnages revient pratiquement à affirmer leur nature fictive » (1989: 210).

Colonna justifica sua posição em uma breve seção na qual afirma que o modo dramático possui uma característica fundamental: a ficcionalidade, sendo essa imediatamente identificável, seja no texto (pela tipografia, diagramação e/ou caixas de diálogos), seja na encenação, acreditando, assim, que o palco seja capaz de assumir um caráter totalmente ficcional. Além disso, em sua tese o teórico recorre a dois pontos principais: o primeiro diz respeito a razões históricas e na condenação que Platão faz, n’A República, do modo dramático, visto sua posição da enunciação (o autor fala como se fosse outro). O segundo é devido a razões funcionais, pois para Colonna é obvio que uma narrativa em forma dramática perderia grandes elementos textuais, sendo, pois, « o teatro pouco adequado para a representação da experiência humana em toda a sua complexidade ». O teatro estaria, assim, marcado por uma imediata irrealidade. Mesmo assim, Colonna cita algumas peças que podem ser consideradas autobiográficas/autoficcionais: L'Impromptu de Versailles, de Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Mollière; Rousseau, juge de Jean-Jacques, de Jean-Jacques Rousseau; L’Histoire, de Witold Gombrowicz; La Grotte, de Jean Anouilh; L'Eglise, de Louis-Ferdinand Céline; Sodome et Gomorrhe, de Jean Giraudoux; e Sei personaggi in cerca d'autore, de Luigi Pirandello.

Além dessas, ainda citamos Victimes du devoir, de Eugène Ionesco, Long Day's Journey into Night, de Eugene O'Neill, e, é claro, Fraden, de August Strindberg. Porém, todos os exemplos, de Colonna e meus, são de peças românticas ou modernas.

Colonna afirma que esses textos não pretendem dizer a verdade sobre seu criador, sendo, pois, a ficcionalidade a mera existência da situação posta em cena. E acentua: « Chez ces auteurs, la fiction de soi paraît surtout être la conséquence d'une mise en abyme paradoxale, où le texte reflète sa propre constitution et sa propre existence » (1989: 210).

Entretanto, ao afirmar que « la simple traduction scénique d'états de choses ou de personnages revient pratiquement à affirmer leur nature fictive » (Colonna, 1989: 210) impossibilita qualquer tentativa de falar sobre si no teatro, ignorando procedimentos metateatrais de ruptura da quarta parede e de desdobramentos de personagens, ambos procedimentos frequentes em peças contemporâneas que se arriscam a tratar do eu. Ao se romper o jogo de ilusão, tais peças ao menos se instauram em outro nível, quer seja de ilusão, quer de realidade, mas sem dúvida em outro nível discursivo.

Assim, há, e isso não se pode negar, uma série de elementos autobiográficos em construções dramáticas de diferentes correntes (teatro autobiográfico, dramaturgia do eu, biodrama, teatro da memória etc.). As peças citadas por Colonna e aquelas citadas por mim não podem ser enquadradas como autoficção por algumas razões (temporais e formais), mas não podemos ignorar o eu do autor ali oculto, disfarçado na maioria das vezes por um nome fictício. Daí a pergunta shakesperiana: o que é um nome? Podemos realmente rejeitar qualquer leitura autobiográfica devido à ausência de homonimato? Ou podemos firmar o homonimato por meio de outros recursos, rastros deixados por seus autores em suas obras, que vão nos possibilitar a enxergar ali uma confissão envergonhada, ficcionalizada ou, somente, ponto de partida para a ficção? Ou ainda: um Ator pode ter seu nome ignorado se interpretar outro nome, seja do dramaturgo e/ou do diretor do espetáculo?

A meu ver, o hibridismo do teatro complica a situação da autoficção em cena ao mesmo tempo em que a reforça. Ora, ocorre entre ator e personagem uma fusão de identidades. Mas, assim como acontece no cinema e na literatura, a figura Autor é problemática, pois, tratando-se de teatro, cabe só a ele a autoria da obra, ou também ao diretor do espetáculo? Seria, pois, autobiográfica somente aquela peça na qual todas essas figuras fossem representadas por uma mesma pessoa? Existiria algum exemplo de uma peça assim?

A partir dessas complicações, Barrientos afirma:

El prototipo de teatro autobiográfico o autoficticio, en aplicación de la fórmula de identidad, estricta o amplia, es el de un espectáculo unipersonal, un monólogo, cuyo único ejecutante es también el autor tanto del texto (si lo hubiere) como de la puesta en escena y un autor tanto representa a sí mismo, es decir, que en rigor no representa, sino que habla y actúa en su propio nombre (2014: 133).

Como escreve Vera Toro, « mientras en los textos narrativos la clave autoficticia se sitúa entre autor implícito, narrador y personaje, en el drama existen –a primera vista– más obstáculos para entablar estas relaciones » (2010: 230), posto que a autoficção é uma forma de ficção e não uma variante ou herdeira da autobiografía. No drama, entretanto, há uma dicotomia natural, isto é, aquela que diz respeito à realidade versus ficção dramática. Assim, podemos conceber a autoficção cênica de uma forma um pouco mais simples: se a autoficção é, desde sempre, um fenômeno híbrido situado em algum ponto entre o pacto autobiográfico e o pacto romanesco, e se o gênero (ou subgênero) nasce da tentativa de ampliar as possibilidades de escritas do eu, por que não ampliar esse as teorias dentro do próprio gênero?

Apesar disso, devemos ter em conta a situação na autoficção cênica. Ela inserida no contexto da « convenção teatral », isto é, o contrato que ocorre no momento da representação entre atores e público, no qual o ator se compromete a fazer-se passar por algo que ele não é e o público se compromete a crer, o que é chamado por Anne Ubersfeld de « denegação teatral », isto é, o « funcionamiento psíquico que permite al espectador ver el real concreto sobre la escena y adherir a eso por ser real, sabiendo (y no olvidando sino por cortos instantes) que ese real no continúa fuera del espacio de la escena » (Ubersfeld, 2002: 32). Assim, temos a primeira concordância entre a autoficção e o metateatro: a autoconsciência dramática. Em outras palavras, o personagem autoficcional no palco tem consciência de que, ali, naquele momento, é um personagem. Sua presentificação na cena seria, pois, desde o princípio metateatral.

Mas por que a vida de alguém supostamente desconhecido seria interessante para um público?

[...] excepto quizás los que encajan en las tres «formas de la autobiografia escénica» que distingue Pavis (1998: 438-439): un interés propiamente teatral, como en La novela de un actor, de Philippe Caubère, en que muestra su itinerario de actor en el Théatre du Soleil; un interés testimonial, sobre la enfermedad, el sexo, la violencia política, etc., caso de un actor seropositivo, como en S/N de Teiji Furuhashi («Dumb Type»), de 1992, por ejemplo, o de víctimas de los regímenes militares latinoamericanos en el teatro de la posdictadura; o, por fin, un interés identitario, de tipo sexual, social, étnico, cultural, etc., como en Spalding Gray, Laurie Anderson o Gómez-Peña. Todos los casos coinciden en utilizar lo autobiográfico para hablar de otra cosa, más general, que nos atañe a todos, y de la que el actor es solo un ejemplo (Barrientos, 2014: 134).

Apesar das contradições, e lembrando que a autoficção é, desde seu nascimento, geradora de discussões não apenas no campo teórico como na própria prática (Casas, 2012), a cena contemporânea se vê invadida nos últimos anos pela prática do real, muito bem explorado por José A. Sánchez:

La creación escénica contemporánea no ha sido ajena a la renovada necesidad de confrontación con lo real que se ha manifestado en todos los ámbitos de la cultura durante la última década. Esa necesidad ha dado lugar a producciones cuyo objetivo es la representación de la realidad en relatos verbales o visuales que, no por acotar lo representable o asumir conscientemente un determinado punto de vista, renuncian a la comprensión de la complejidad (2007: 9).

Barrientos defende a existência desse teatro citando o pai do conceito de autoficção:

Hay un aspecto referido por Doubrovsky (2012: 53) como justificación de la autoficción que da pie a observaciones de interés sobre los límites de la autobiografía escénica. Me refiero a que frente a la autobiografía, que «es un privilegio reservado a los importantes de este mundo, en el otoño de su vida y en un estilo bello», la autoficción supone una especie de democratización de la práctica autográfica, pues «no siendo por sus méritos uno de los derechos-habientes de la autobiografía, “el hombre cualquiera” que soy debe, para captar al lector reacio, endosarle su vida real bajo la imagen más prestigiosa de una existencia imaginaria. Los humildes, que no tienen derecho a la historia, tienen derecho a la novela» (2014: 134).

Chamaremos, então, de autoficcional o teatro que, aproveitando a casa vaga deixada por Lejeune, firma um novo pacto com o leitor/espectador; um pacto que inclui o leitor em um jogo de verdade e ilusão sem vencedores. Pacto ambíguo, duplo, que envolve o pacto autobiográfico e o ficcional. A ausência de narrador/mediador no discurso dramático pode ser resolvida da seguinte forma:

1) En el texto dramático las acotaciones tienen la misma función que tiene el discurso del narrador en un texto narrativo. 2) No siempre las acotaciones se limitan a meras instrucciones para la realización escénica, sino que pueden tratar los sucesos como hechos ficcionalmente verdaderos […]. 3) A veces existen personajes que introducen o comentan la diégesis desde un nivel superior o las acotaciones son formuladas por un hablante extradiegético y homodiegético (Toro, 2010: 232).

Vera Toro (2010) chama de «hablante» a instância narrativa no drama para diferenciá-la do narrador análogo dos textos narrativos. Esse falante se manifesta em vários níveis comunicativos para tentar conciliar as realidades textual e cênica. Podemos, assim, buscar uma voz narratológica na construção teatral, não da mesma maneira que em textos narrativos, mas de outro nível de enunciação.

A partir disso, Toro indica cinco tipos de autoficção cênica, ou ainda: três classes de autoficções e duas de autorficção.

1) Autoficción I: El autor comparte el nombre o un derivado con un personaje interpretado por otro actor.
2) Autorficción: Una breve intromisión del autor en obra, no necesariamente como personaje.
3) Autoficción II: El autor no comparte el nombre, sino otros rasgos de su identidad (descritos en las acotaciones) con un personaje interpretado por otro actor.
4) El nombre del autor u otra obra del autor son meramente mencionados por el hablante extradiegético heterodiegético (en las acotaciones). Este tipo de autoficción lo considero teóricamente posible pero será difícil encontrar ejemplos.
5) Autoficción III: El autor (a veces como director y guionista) interpreta a un personaje con el cual comparte el nombre o un derivado y/u otros rasgos de su biografía (también llamado “teatro autobiográfico” […]) (Toro, 2010: 237-238).

Para a autora, a autoficção pressupõe uma reflexão e um metadiscurso, transformado no drama em discurso metateatral ao «tratar de una serie de cuestiones que remiten finalmente a la desconfianza ante la capacidad referencial del lenguaje, tal y como sostiene [Javier] Marías en las páginas iniciales de Negra espalda del tiempo: “relatar lo ocurrido es inconcebible y vano, o bien es solo posible como invención”» (Casas, 2012: 38).

Trocando em miúdos, esse teatro atual configura uma nova modalidade de dramaturgia do eu, isto é, peças que, utilizando material autobiográfico, criam uma ficção/ilusão teatral que move um novo jogo com o espectador, ainda baseado nas questões do jogo metateatral: essa peça é uma ficção ou não? É um documentário encenado fielmente? Há verdade nesse discurso? E, a mais antiga, o que é a verdade? E, finalmente, o que é o teatro?

Reafirmo: não é apenas o eu empírico do dramaturgo e/ou ator colocado em cena, mas, isso e também, a criação de um jogo de crença e descrença que move um motor maior de reflexão teatral que parece responder à própria crise do drama e da fábula, apontada por Jean-Pierre Sarrazac.

Diante desse panorama, temos dois caminhos: o primeiro, que nos leva afirmar que toda obra literária é, de certa forma, autobiográfica, sendo, pois, quase que vazio o estudo de autobiografia e outras escritas de si, pois esse abarcaria toda produção artística/literária; e um segundo, no qual vamos chamar de autobiográfica e/ou autoficcional somente obras nas quais seus autores intencionaram expor sua vida, impudica e confessadamente.

Daí a necessidade de se estabelecer que o gênero autoficcional é, pois, uma prática textual contemporânea na qual, ficcionalizando a si próprio, o autor desestabiliza o conceito de verdade, de ficção e do próprio eu, criando um texto que « problematiza a relação entre as noções de real (ou referencial) e de ficcional, assim como a tensão entre a presença e a falta » (Klinger, 2012: 34).

Desta forma, as peças que apresentarei se aproximam, claro, de uma « dramaturgia do eu », e são importantes para que compreendamos o teatro autoficcional contemporâneo. Em suma, o efeito ao qual chamamos a atenção será o mesmo: quebrar-se-á a ilusão do drama encenado na medida em que o eu empírico do autor se torna evidente em cena.

Luís Antônio-Gabriela: um pedido de desculpas

Luís Antônio-Gabriela (Baskerville, 2012), espetáculo de 2011, uma montagem conjunta de Nelson Baskerville, Verônica Gentilin e Cia. Mungunzá de Teatro de São Paulo,2 ganhou inúmeros prêmios teatrais no Brasil e elogios da crítica. O programa da peça anuncia uma breve sinopse com fotos e a natureza da história: trata-se de um documentário cênico da história de Luís Antônio, irmão homossexual de Nelson Baskerville, que sai de Santos (para alívio de todos) e vai para a Espanha, onde assume o nome de Gabriela. Lá vive sem contato com a família até sua morte, em 2006, em decorrência da Aids.

O efeito de real é forçado por projeções visuais ao longo da peça, com cenas de conversas entre Nelson e a companhia, mostrando a gênese do espetáculo. Logo, são um tipo de « fonte que se configura num testemunho registrado diretamente da realidade » (Soler, 2008: 36). Entretanto, em nenhum momento o espectador se sente à vontade para crer totalmente, seja por elementos óbvios (não é a pessoa do Nelson que conta, mas uma atriz que o representa e que pode facilmente falsear o discurso), seja por elementos cênicos que são expostos, efeito também metateatral que outrora desejou evidenciar a natureza do drama, mas que agora assume o papel de revelar a ficção por trás da possível verdade. A história pode ser verdadeira, mas está em um espaço ficcional, ilusório, fantasioso. O espectador não pode, e não, se esquecer em nenhum momento que está diante do palco e que, « no espetáculo teatral, como no texto de ficção, espaço e tempo são ilusórios, na cena e no romance tudo remete ao imaginário » (Klinger, 2012: 51). No teatro, quanto mais real a ilusão aparenta ser, mais ficcional ela será instaurada.

Tais recursos evidenciam também o contexto político da época: estamos em plena ditadura militar e a autoridade do então presidente reforça a autoridade paterna dentro da casa.

A cena configura Nelson e Luís Antônio como duplos de uma mesma persona. São meio-irmãos, mas possuem uma ligação desde a infância. Brincam juntos, dormem no mesmo quarto, são irmãos e são criados pela mesma mulher, que não é mãe de nenhum deles. A mãe de Nelson, Gladys, morre quando ele nasce. Daí a presença de uma frase em bexigas emitida por Nelson: « Eu não soube nascer, mãe » (Baskerville, 2012: 50). Luís Antônio, da mesma forma, não conheceu a mãe. Um dia, Pascoal, seu pai, chegou em casa com um bebê e disse para sua segunda esposa que havia adotado aquele menino. Ela então, que já era mãe de três, se tornou madrasta de outros seis filhos. Luís Antônio e Nelsinho vão manter um segredo que irá se transformar em repulsa para Nelson na sua maturidade: uma experiência sexual na infância.

Há uma cena de abuso feita debaixo da arquibancada do teatro. Precisamente abaixo das bundas da plateia. Entram o ator que faz Bolota e a atriz que faz Bolinho. Vêm ainda mais duas atrizes. Uma que filma a cena, que é reproduzida, em tempo real, em dois enormes telões, e outra que ilumina a cena com flashes estroboscópicos. Elas balançam a arquibancada e isso assusta ainda mais a plateia. Eles gemem. Bolinho chora. Depois, Bolinho volta com uma luz de led branca que ilumina só o rosto da atriz. Prepara uma bacia com uma bolsa de soro fisiológico em cima. Mas a bolsa está cheia de leite. Ela abre o controlador de fluxo de bolsa e diz um que ela mesma escreveu: – Boa noite, meu nome é Bolinho. BO vem do verbo « bordar » e LINHO é diminutivo de « coelhinho ». Então, Bolinho significa Coelhinho Bordado. [...] (Baskerville, 2012: 96).

A partir desse ato, os dois, que eram tão próximos, se afastam, e Luís Antônio foi se tornando « um problema » para os demais. Cada vez mais afeminado, cada vez mais conhecido na cidade de Santos, estado de São Paulo, sendo preso cada vez com mais frequência. Os irmãos reclamam de como Luís Antônio era conhecido. Por fazer programas no porto e nas rodovias, foi preso inúmeras vezes. Pascoal acordava, então, de madrugada, para buscar o menino na delegacia. E a correção tinha sempre a mesma forma: a violência.

As surras, cada vez mais frequentes, eram acompanhadas pelo verdadeiro motivo naquela “correção”: « – Não quero um pederasta dentro da minha casa! » (Baskerville, 2012: 37). Tais atos de Luís Antônio, assim como as surras dadas pelo pai, recebem na peça tratamento humanizador: eles são sujeitos ao erro porque busca-se ali retratar a natureza do real, e não uma visão romantizada da vida. Enfatiza-se, por isso, a ausência de mágoa em Luís Antônio: « O pai tava brincando [...] Era só brincadeira. Agora, dorme, pequeno, dorme. Não foi nada, dorme » (Baskerville, 2012: 37).

O que mais surpreendia em Bolota é que ele parecia ter uma compreensão maior de tudo aquilo. Sabia que não poderia fazer nada quando à sua condição. Não era escolha. Não era opção. Era ele. Erro divino. Sabia que ninguém, além dele mesmo, o compreenderia e que isso custaria caro. Ele apanhava como alguém que vai até ali passear e já volta. Porque ele ria, mesmo depois de levar a maior surra (Baskerville, 2015: 62).

Outro exemplo temos na cena 8, chamada « Surra de Vara I », na qual o pai pede: « Nelsinho, coloca a música para o papai ». E começa a tocar Torna piccina mia, de C.A. Bixio, na voz de Beniamino Gigli, preferida de Pascoal. Apesar das surras constantes, ninguém enfrentava Pascoal. Ele dizia que quando um filho voltasse para ele uma tapa ou um murro, ele o mataria e depois daria um tiro na própria boca. O medo de ser Édipo era um fantasma calado na boca de cada filho. « Havia um medo generalizado de que, em algum dia, a profecia se concretizasse » (Baskerville, 2015: 125).

Na cena, o ator que faz o pai pede a Bolinho que toque a música novamente. Torna Piccina Mia invade o espaço. Um enorme rolo de papel, onde se lê « PEDERASTA », desce do urdimento e duas atrizes batem no papel com varas de pescar. O barulho é ensurdecedor. Bolota, de dentro de uma bacia, chora, grita, expelindo sangue pela boca. O sangue vem de uma garrafinha de groselha que ele vai tomando enquanto apanha. Mas, na cena, ninguém toca nele. Bolinho debate-se no chão, tentando desvencilhar-se de um enorme plástico. O pai dubla Beniamino sobre um baú móvel, usando, também, uma vara de pescar como microfone. Panos vermelhos são jogados sobre as caixas de luzes frias, inundando todo o cenário de vermelho. Maria limpa o sangue de groselha do avental de plástico transparente de Bolota (Baskerville, 2015: 126).

Surpreende dizer que, mesmo após tanto enfrentamento, só uma pessoa lamentou a saída definitiva de Luís Antônio de casa: o próprio pai. Depois, em 1984, Pascoal morre enquanto dormia. Luís Antônio é procurado pelas irmãs para assinar alguns documentos. Quatro anos depois, vai pra Espanha. Já era Gabriela.

Foram vinte anos sem irmão algum procurar saber o que houve com Gabriela.

Temos, então, no palco os seguintes personagens: Bolinho, Bolota, Pascoal, a Irmã, a Madrasta e Serginho, amigo de Bolota. O metateatro é, em si, uma constante no espetáculo, cuja primeira cena apresenta os atores e os papéis que representarão. Quando Verônica, a atriz que representa Nelson, se apresenta, ela afirma que trata-se de Nelson Baskerville, último filho do casal Glédis e Pascoal e diretor do espetáculo. Rompe-se desde o início a quarta parede, evidenciando não apenas que o teatro é arte manipulada naquele aqui-agora, mas também o desejo de partilha: a apresentação inicial demonstra certa preocupação com a recepção, pois direciona a leitura da peça. Firma-se o pacto.

A apresentação individual de cada personagem também evidencia o simulacro ao mesmo tempo em que parece ironizar a denegação teatral. A disjunção, por exemplo, entre o sexo da atriz que faz Nelson abre espaço para a ficção se instaurar, fonçando-a, diferente do que ocorreria no cinema, por exemplo, cuja fragilidade da relação pactual entre autor e receptor impede qualquer vacilação – salvo exemplos de cinema experimental, como projeto Dogma e filmes como Dogville ou outros comerciais que quebram com a « quarta parede ». Nota-se que a atriz que faz Nelson é Verônica Gentilin, co-autora da peça. Assim, ela assume em palco a sua identidade real e sua identidade cênica, Nelson, « diretor deste espetáculo », ao mesmo tempo em que, metateatralmente, assume sua consciência dramática, isto é, sabe-se ser personagem, afirma ter consciência de ser manipulada, de ser uma personagem movida pela força e pela mente de um dramaturgo, de um diretor. Desta forma, tem-se as instâncias nominais do sujeito da enunciação, que é o mesmo do enunciado, constituindo o homonimato entre as partes Autor = Personagem. Embora não seja Nelson o ator, ele se faz presente dessa e de outras formas, como se verá.

Ainda sob esse mecanismo textual e cênico, ele instaura certo distanciamento, que será, posteriormente, intensificado pelo recurso épico, a fim de que o espectador faça como fez o próprio Nelson: um exame da pessoa de Luís Antônio que aponte não para uma condenação ou uma absolvição, mas para um entendimento, uma compreensão.

O mesmo acontece com o personagem de Luís Antônio, que não só anuncia o nome real do ator que o representa como diz os anos de nascimento e morte de Luís Antônio, evidenciando a consciência dramática de certos personagens. Essa consciência, inclusive da morte, abre caminho para um bonito pensamento acerca desse personagem: ele sabe que vai morrer ao final, o que o torna mais heroico do que qualquer outro personagem que entra em cena. A comoção toda do espetáculo será direcionada a Luís Antônio, o que realmente faz do espetáculo uma cena poética, um quadro bem pintado, no qual você vê algo desfocado que sabe significar algo além do concreto que mimetiza, algo mais metafísico, mais indescritível. Luís Antônio é personagem elíptico: significa milhões de coisas ao mesmo tempo em que significa um único Luís Antônio: aquele que nasceu em 1953 em Santos, São Paulo, e que faleceu em 2006, em Bilbao, Espanha.

Outros personagens nem mesmo são configurados por um corpo real. Gledys, a mãe que morreu no parto de Nelsinho, é representada por um lençol branco. A impossibilidade de representação de certos objetos é então enfatizada: existem coisas que não podem ser representadas. A cena do parto, inclusive, é executada enquanto são projetadas fotografias de Nelson Baskerville adulto no telão maior, ao fundo. Em seguida, a atriz que o representa, Verônica, se aproxima de uma câmera situada ao lado esquerdo do palco e começa a encher bexigas, cada uma com uma palavra: « EU. NÃO. SOUBE. NASCER. MÃE : A última bexiga, “MÃE”, é solta depois de cheia e percorre sinuosa as cabeças da plateia » (Baskerville, 2012: 51). O fato de não se emitir verbalmente essa frase permite com que ela seja recebida com certo efeito de latência, lentamente, como se doesse. E talvez ainda doa.

O efeito de real também é enfatizado pela leitura de cartas que Gabriela mandou para a irmã, Maria Cristina, antes de morrer. Quase vinte anos após a morte do pai, alguém disse que Gabriela teria morrido e a família acabou verificando com a embaixada brasileira em Bilbao. Para surpresa de todos, Gabriela estava viva, e começa a se corresponder com a irmã:

Bilbao – Viscaya – España
02 de junho de 2003.
Maria,
Como estás? Espero que contigo esteja tudo bem e me alegro que tenha uma boa família e que a vida tenha te dado tudo o que querias. La chica do consulado me mandou uma carta em que tu estavas preocupada por mim. Não poderia imaginar que tu te recordavas ainda de mim. Foi uma surpresa e me emocionou mucho. Por saber que depois de tantos e tantos anos alguém daí se recorde de mim. Até agora penso que é uma imaginação ou um sonho que tive. Pensei mucho em te escrever, pois foi muito difícil para mim acreditar que essa carta havia chegado em meus poderes (Baskerville, 2015: 192).

Gabriela segue narrando sua vida desde então: as experiências, os problemas de saúde, as inflamações, as ajudas que recebia de amigos e do governo espanhol etc. Finaliza dizendo:

Com todo o meu coração, te agradeço por ter se preocupado por mim e te desejo todo o melhor do mundo. Apesar da pouca relação que tivemos. Mas posso imaginar que eres muito guapa (bonita). Perdone que escrevo mal. Misturo las palavras, mas espero que, com esforço, me compreendas.
Besos a todos os teus e para quem se lembra de mim. Te quero muitas e muchas gracias.
De seu irmão Luís Antônio (Gabriela) (Baskerville, 2015: 193).

A leitura da carta, mantendo inclusive a mistura de português e espanhol e os erros de grafia, intenta evocar uma emoção e um sentimento real. No palco temos o ator Marcos, já totalmente transformado em Gabriela, sentado em uma cadeira como aquela do pai, aquela na qual era indigno de sentar. Ele recita a carta enquanto a irmã se aproxima e se abraçam.

Percebe-se também em Luís Antônio-Gabriela que o travestismo é utilizado como metáfora teatral. Podemos ler o corpo travesty como o corpo que precisa ser modificado, a realidade que precisa passar pela metamorfose para ser o que está destinada a ser. Lagarta-borboleta. Triste metáfora, apesar de bela: as borboletas vivem uma vida curta, e parece-me demasiado sofrimento o sair do casulo, embora necessário.

E assim chega-se ao final da vida da borboleta Gabriela. Há, se percebe, uma ligação muito forte com o pai e a mãe que perdura até sua morte, só, em Bilbao. Após falar com a irmã pelo telefone, já não conseguindo segurar fezes ou urina, com o corpo totalmente atingido pela doença e pelos resultados negativos das cirurgias e dos silicones, Gabriela está no leito, no escuro, ao lado do lençol que representa a mãe morta e de Pascoal. Ambos, os pais, possuem uma luz em seus peitos, como se o coração morto brilhasse. A irmã, na outra extreminidade do palco, tem uma lanterna no rosto, que é gravado e projetado, assim como o rosto de Gabriela. Elas conversam como se falassem ao telephone. O olhar de Gabriela observa o nada. Ela grita que está morrendo, pergunta pelo pai e pela mãe. A irmã diz que eles estão ao lado dela na cama, e que eles iriam levar Gabriela para um mundo sem dor e sem medo, onde ela poderia descansar e nunca mais sofrer. Nunca mais sentir dor. « E foi assim que Luís Antônio acabou » (Baskerville, 2012: 221).

E o público então reconhece a natureza verdadeira do espetáculo. Ao som de Elton John, « Your song », cantada ao vivo pelos atores travestidos diante de espelhos e molduras, temos Gabriela/Luís Antônio, sem maquiagem e sem figurino, ocultando o pênis entre as pernas, que permanece imóvel na morte. Sua história tem um duplo intuito: primeiro, Gabriela serve de metáfora para a fricção entre o ser e o parecer, o real e o teatral do cotidiano, da vida, e que não deixa de ser uma história real, uma pessoa real que sofreu de forma violenta e verdadeira. Temos então o segundo intuito da peça que é explicitamente denunciado por Nelson Baskerville ao final, ainda ao som de Elton John: « É uma coisa que não sai de mim. Talvez saia com este espetáculo. O espetáculo é um pedido de desculpas. Eu estou dizendo: Desculpa, Tônio, eu não soube lidar com isso. E assino: Seu irmão, Bolinho » (Baskerville, 2012: 241).

Autoficção e metateatro

A autoficção, somada a outros elementos metateatrais que tornam o discurso crítico, desestabiliza uma zona de conforto do leitor: aquela que diz se tratar de uma ficção ou de um escrito autobiográfico, embora, lembramos, ficção e mentira são duas instâncias diferentes e autônomas, nas quais a primeira seria uma manipulação da realidade a partir do conceito de mimeses de Aristóteles e a segunda uma aversão a essa realidade de modo grotesco, sem apelo artístico.

Tal visão dicotômica remete, assim, a Jacques Rancière, para que « o real precisa ser ficcionado para ser pensado ».

Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos historiados e analistas da realidade social. Escrever a história e escrever histórias pertenecem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas (2005: 58).

Logo, analisar um texto autoficcional não se volta ao trabalho da crítica historiográfica de encontrar, permeado na ficção, os dados ou fatos reais. A questão que se levanta é a construção do mito, da dúvida, do corpo híbrido que se torna o texto literário nos tempos atuais. Daí a afirmação genérica de que a autoficção só seria possível nos tempos pós-modernos, pois somente esse sujeito, fragmentado e ambíguo, poderia ser representado por um discurso igualmente fragmentado e ambíguo.

Em outras palavras, afirmamos que a prática autoficcional enquanto discurso híbrido entre ficção e realidade existe há tempos. Entretanto, tal discurso, posto de forma crítica e metalinguística, só poderá ser elencado de forma sistemática no século XX com o advento das vanguardas, principalmente do Surrealismo, e de forma explícita nos anos pós-Doubrovsky.

Assim como a intertextualidade, a autoficção vai depender não apenas do enunciador, mas também, e talvez principalmente, do enunciatário, salvo aqueles textos, como o último exemplo cênico apresentado, nos quais a dúvida é imposta discursivamente, impondo um texto obrigatoriamente, em partes, crítico.

Ora, « pourqu’il y ait done possibilité d’autofiction théâtrale, une trace de l’homonymie entre l’auteur et le personnage doit être perceptible » (Weigel, 2011: 25). Caso contrário, não se sentirá o efeito autoficcional. Assim, como estamos tratando de textos nos quais a homonímia não será como na prosa, visto a ausência da figura do narrador, dados que possibilitam a identificação podem ser inseridos como recursos cênicos.

Um exemplo: em Luís Antônio-Gabriela são projetados vídeos e fotografias em um telão no fundo do palco e emitidas gravações de familiares, evidenciando a veracidade de ao menos parte do narrado.

Desta forma, levando-se em conta que « o dado não ficcional só será percebido como tal quando a plateia, previamente ou durante a própria encenação, significá-lo desse modo » (Soler, 2008: 37), Luís Antônio-Gabriela apresenta uma problemática: enquanto as primeiras peças que citamos se colocam como ficção, embora seja uma ficção baseada em dados referenciais e verificáveis, ela se coloca, desde o princípio, como contaminada pela verdade, seja ao se colocar como documentário cênico, seja pelo arquitexto ou paratexto que marca a fonte referencial. Assim, o espectador já olha para a verdade não querendo enxergar ali ficção, ou ainda: olha para a ficção procurando a verdade, a confissão, a brecha. Ao contrário das peças citadas por Pavis como autobiográficas, Luís Antônio-Gabriela tem a ficção instaurada e não a dúvida quanto à referencialidade dos dados. Em Luís Antônio-Gabriela temos a procura, por meio da evidência do real, da problemática do discurso transformado em um enunciado crítico. O ponto de vista é acentuado pelo uso de recursos metateatrais que englobam, dentre outras coisas, a consciência dramática dos personagens, a quebra da quarta parede, a intertextualidade, a intermidialidade e a própria autoficção. Como escreve Philippe Weigel:

Pour qu’il y ait autofiction dans un texte de théâtre, il doit y avoir un travail sur la langue, sur le langage dramatique, un minimum d’invention verbale et d’originalité stylistique, le choix du fragment, un questionnement sur le sujet qui serait « un sujet fragmenté et fragmentaire, déconstruit dans sa construction » , un métadiscours sur le théâtre, une stratégie d’ambigüité et une viseé pragmatique : à la difference de la littérature de soi, le théâtre est par essence un acte de la double communication : envers le public et les personnages entre eux (2011: 26).

Nesse ponto, o discurso do crítico francês corrobora para minha hipótese principal: que a autoficção promove, na cena teatral, um movimento metateatral devido a esse aspecto duplo na comunicação e a promoção de um metadiscurso. Não se trata de distinguir paralelamente real e ficcional nessas peças, mas, sim, analisar o efeito metateatral que o reconhecimento da manipulação dessas duas categorias causa no espectador/leitor. Ao formular sua teoria sobre o pacto autobiográfico, Lejeune (2008) lembra o leitor que existe um horizonte de expectativa: a obra autobiográfica será recebida como referencial, isto é, toda verdadeira, assim como o pacto ficcional, ou romanesco, induz o leitor ao caminho contrário: da ficção. Em suma:

Dans l'autobiographie, la relation avec l'auteur est embrayée (il vous demande de le croire, il voudrais obtenir votre estime, peut-être votre admiration où meme votre amour, votre reáction à sa personne est sollicité, comme par une personne réelle dans la vie courante), tandis que dans le roman elle est débrayée (vous réagissez librement au texte, à l'historie, vous n'êtes plus une personne que l'auteur sollicite) (Lejeune, 2005: 32).

Citando Gérard Genette, « sabe-se que a percepção do gênero em larga medida orienta e determina o “horizonte de expectativa” do leitor e, portanto, a leitura da obra » (2010: 18). Assim, a partir do momento em que é instaurado um discurso crítico no qual ficção e realidade se entrelaçam, promove-se uma alteração no modo de leitura e de recepção desse texto. Multiplicam-se, pois, as variantes de espectadores e leitores, pois a significação será diferente na medida em que o reconhecimento do hibridismo se difere de pessoa para pessoa. Em suma, ao recebermos um texto não ficcional, mesmo que em partes, o fazemos com uma relação diferente (Soler, 2008: 37). A recepção de um discurso não ficcional possui, na maioria das vezes, maior fruição que o discurso ficcional.

A partir da problematização de Doubrovsky a partir das teorias de Lejeune, a obra literária se permitiu entrar nesse espaço híbrido do jogo entre real e ficcional. Não tardaria para o teatro, espaço híbrido por excelência, se rendesse aos caprichos sedutores da autoficção, que possibilita a construção cênica de um texto que incorpora seu jogo natural: atores reais, espaço real, ação ficcional, personagens ficcionais criadas por um dramaturgo real. É como se o teatro fizesse, desde sempre, o jogo autoficcional que o romance só se renderá a fazer no século XX.

Tal espaço híbrido converte a realidade, uma vez ficcionada, em signo, forçando, assim, uma transgressão. Essa transgressão que nos parece interessar no campo da autoficção, pois trata-se de uma transgressão não apenas no que se refere ao conteúdo do narrado, mas também, e talvez principalmente, na forma como algo é narrador, ou seja, uma transgressão na linguagem.

Mesma transgressão ocorrerá, por exemplo, na pessoa do ator, pois « quando o ator entra na cena teatral, ela passa a “significar”, a virar signo, desdobrando-se em ator e personagem » (Klinger, 2012: 50). Como signo, ele também se torna uma transgressão do que pré-determinamos ser a identidade do sujeito, e isso não é mérito da autoficção, e sim do espaço cênico em si. O ator é, em cena, sujeito da atuação e da representação, além do próprio ser que ele constitui enquanto sujeito empírico. Não é nunca simples e completo real, mesmo que represente a si mesmo, da mesma forma que nunca será completa atuação. Em outras palavras, « um recurso metateatral é o modo de composição das personagens, sempre pautado pela duplicidade, pelo ambíguo » (Pascolati, 2011: 98).

Ora, vimos que a autoficção cênica é marcada, pois, pela « autoconsciência », que é um recurso metateatral. Mas podemos ir além: Toro cita Larson (1992: 1015), para quem metateatrais são as peças nas quais os dramaturgos empregam técnicas autorreflexivas que causam efeitos específicos com o tema e a trama. Larson (1992: 1918), por sua vez, afirma que o metateatro sempre produz uma perspectiva dupla para o espectador/leitor, oferecenco modelos para se entender melhor as estruturas fundamentais do teatro e a experiencia de mundo como uma construção ficcional, artificial. Assim são cinco, segundo Hornby (1986), os tipos de referências metateatrais, a saber: 1) teatro dentro do teatro; 2) a cerimônia dentro do drama; 3) a ideia de desempenhar um papel dentro de outro; 4) as referências ou alusões literárias ou da vida real; e 5) a autorreferência.

Um espetáculo autoficcional pode, pois, apresentar as cinco categoriais, mas é na quarta que parece termos a possibilidade e potência metadramática da autoficção.

En cuanto a los recursos auto(r)ficcionales, me parecen reveladoras las relativizaciones que Hornby formula con respecto a las referencias a la vida extradramática: La mera adaptación de la realidad extradramática en sí, no es en absoluto metadramática, porque el público no distingue entre elementos apropiados de la realidad o los puramente ficticios, y porque significa poco para la experiencia de una obra (Toro, 2010: 235).

A partir dessas leituras, verificamos que, dramatizando a si mesmo, o autor dramático mergulha no jogo/dilema entre mentira e verdade, entrando assim nos domínios da metalinguagem, no qual a própria figura do personagem é questionada. Tanto a autoficção como o metateatro em si colocam em crise esse espaço ambíguo do teatro e essa figura dúbia que é o personagem.

Elas evidenciam que, gradualmente, a escrita de si no teatro (e na literatura em si) começa a sair da clandestinidade para reivindicar um estatuto literário, pois esse novo gênero, com base na dúvida, no fragmento e na alteridade, pode ser, também, um ato de resistência. Textos autoficcionais permitem uma consciência do sujeito própria do momento contemporâneo, que não consegue mais, como o queria Aristóteles, representar ou imitar uma ação completa no teatro, pois ele próprio, o sujeito, é hoje incompleto, necessitando agora, talvez mais do que nunca, do teatro e de outras artes para completar sua incompletude.

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Referencias bibliográficas

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1 A primeira edição do Dicionário de Pavis é de 1980, mas ele só apresenta o verbete a partir da edição de 1996.

2 O espetáculo estreou em 16 de março de 2011, permanecendo por cinco temporadas em São Paulo e participando de festivais por todo o Brasil e do Festival São Palco em Coimbra (Portugal). Ficha Técnica: ARGUMENTO: Nelson Baskerville; INTERVENÇÃO DRAMATÚRGICA: Verônica Gentilin; ELENCO: Marcos Felipe, Lucas Beda, Sandra Modesto, Verônica Gentilin, Virginia Iglesias, Day Porto; TÉCNICO PERFORMANCE: Pedro Augusto; ARTISTA PLASTICO: Thiago Hattnher; DIREÇÃO: Nelson Baskerville; DIRETORA ASSISTENTE: Ondina Castilho; ASSISTENTE DE DIREÇÃO: Camila Murano; DIREÇÃO MUSICAL, COMPOSIÇÃO E ARRANJO: Gustavo Sarzi; TRILHA SONORA: Nelson Baskerville; ILUMINAÇÃO: Marcos Felipe e Nelson Baskerville; CENÁRIO: Marcos Felipe e Nelson Baskerville; FIGURINOS: Camila Murano; PRODUÇÃO EXECUTIVA: Sandra Modesto e Marcos Felipe; PRODUÇÃO GERAL: Cia Mungunzá de Teatro. Espetáculo na íntegra disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Bb_-PZQUloc&t=112s>. Acesso em 05 de janeiro de 2017.