Leituras de vida / Vidas de leitura

Reading lifes / Lifes of reading

Vitor FIGUEIREDO

Fábrica das Palavras, Biblioteca Municipal de Vila Franca de Xira, Portugal

vitor.figueiredo[at]cm-vfxira.pt

Impossibilia. Revista Internacional de Estudios Literarios. ISSN 2174-2464. No. 17 (mayo 2019). Páginas 180-196. Artículo recibido 13 de diciembre de 2018, aceptado 13 de mayo de 2019, publicado 30 de mayo de 2019

Resumo: Os objetivos do artigo prendem-se com a necessidade de identificar as causas do gosto pela leitura, contribuindo para uma estruturação de um modelo de aquisição desse gosto e das variáveis que o enformam. Esta identificação assentou no estudo de casos de leitores portadores de elevados índices de leitura literária, verificados através dos dados disponíveis nas Bibliotecas Municipais dos Concelhos de Vila Franca de Xira e Loures. O artigo baseia-se nos seguintes aspetos essenciais: expectativas de sucesso quanto aos efeitos benéficos da leitura (expectativas de prazer e/ou utilidade); determinismos sociais e culturais; mediadores públicos; mediadores privados; aspetos psicoafectivos; ruturas, viragens ou momentos-chave na história de vida. O autor concluique o hábito de leitura é o produto de um processo simultâneo e sucessivo de uma pluralidade de estímulos e referências não homogéneas ou necessariamente coerentes, consubstanciado num repertório de esquemas ou disposições híbridas que tenderá a ser acionado de acordo com os contextos de realização.

Palavras-chave: histórias de vida, histórias de leitura, determinismos sociais e culturais, disposições, práticas de leitura, construção e reconstrução identitárias

Abstract: The purposes of the article lay on the need to identify the causes behind the taste for reading, thus contributing to the construction of an acquisitive pattern of that taste and the variables there contained. This identification was based on the study of readers bearing high levels of literary reading, confirmed through the available data from the Municipal Libraries of Vila Franca de Xira and Loures. The article is based upon the following main aspects: expectations of success as for the beneficial results of reading (expectations of pleasures and/or usefulness); social and cultural determinisms; public mediators; private mediators; psycho-affective aspects; disruptions, turns or key-moments in one’s life story. The author infers that the reading habit is the result of a successive and simultaneous procedure of various non necessarily coherent or similar references and stimulus, consolidated in a number of schemes or hybrid dispositions, which will be set in motion according to the realization contexts.

Keywords: life stories, reading stories, social and cultural determinisms, dispositions, practices of reading, identity construction and reconstruction

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Introdução

O texto do presente artigo reverte diretamente para a tese de mestrado com o mesmo título, apresentada há alguns anos atrás, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, no âmbito do Mestrado em Ciências da Educação, Especialização em Educação e Leitura, onde, basicamente, foram analisadas as práticas de leitura de um grupo de grandes leitores, associadas às suas histórias de vida. Foram entrevistados leitores que pelo conhecimento das fichas de leitura e pelas práticas de leitura presencial e no domicílio, correspondem às características de grandes leitores.

Refletindo previamente sobre a situação da leitura e da escrita, foi fácil constatar que a erradicação praticamente total do analfabetismo, a expansão social da educação, assim como as exigências da vida moderna (através das atividades de consumo, a integração no mundo laboral, etc.) impulsionaram de forma inevitável a leitura e a escrita. Vivemos, efetivamente, numa sociedade iminentemente alfabética, que emprega a textualidade com profusão na organização e execução das suas mais elementares atividades quotidianas. Não obstante, manifesta-se uma crescente preocupação pelo incremento do analfabetismo funcional, definido pela insuficiência dos níveis de compreensão leitora e pela mudança negativa nas práticas leiturais. Que está, na realidade, a suceder com a leitura? Trata-se de um fenómeno universal e o gosto pela leitura é algo de inquestionável? Ou a atual situação e as perspetivas futuras estão longe de ser risonhas?

Os dados estatísticos e estudos sociológicos disponíveis apontam para um saldo negativo da questão, embora os diagnósticos apresentados se referissem especialmente à leitura de livros. Se considerarmos a imprensa diária, as revistas, informações avulsas, circulares, ofícios e demais documentos de trabalho os folhetos publicitários ou informativos, o manuseio dos gadgets eletrónicos que rodeiam os nossos atos quotidianos, inclusive as legendas de filmes e séries televisivas, as páginas WEB, os painéis publicitários que pululam na via pública, etc., observamos que, na realidade, a leitura e a escrita estão constantemente presentes na vida diária. Sem embargo, se a atenção é focada na leitura de livros, tal deve-se ao facto de o livro acrescentar ao ato de leitura um significado cultural que os demais media não alcançam ou possuem em menor medida, especialmente os mais massificados. E, em relação à leitura de livros, os dados desmentem eventuais declarações otimistas. Bem pelo contrário, exibem com inegável eloquência uma situação de crise cultural, longe de uma sociedade leitora tão preconizada pelas instituições. Considerando que o leitor iletrado e o analfabetismo funcional também existiram em épocas anteriores, o problema reside agora no facto de se constatar a existência de uma regressão que rompe com a progressão alfabética evidenciada nos últimos dois séculos. Uma prévia reflexão sobre o ato de leitura permite destacar a pluralidade que lhe é específica, aqui entendida como uma prática social em toda a sua totalidade e não só como uma prática puramente cultural.

A leitura é, pelas suas funções sociais, a mais diversificada das práticas culturais: oferece-se e impõe-se sob as formas mais heterogéneas em cada passo da perceção e do comportamento quotidiano, incontornavelmente presente tanto na vida privada como na esfera pública. A leitura é portadora de uma praxis plena de contradições: vivida tanto no domínio da liberdade e do lazer, como no âmbito da obrigatoriedade escolar e no pleno exercício de muitas profissões; totalmente banalizada aquando da rotineira leitura de documentos administrativos ou fortemente valorizada quando surge em associação com o cânone literário. Por consequência, a leitura não pode ser vista como um puro e agradável exercício de lazer, contrariamente a outras atividades culturais, na medida em que é uma atividade obrigatória para todos durante a vida escolar e claramente indispensável na maior parte dos atos da nossa vida profissional ou pessoal: instrumento de todos os ofícios, disponível em todos os géneros, praticável em todos os espaços, referencial de “status” social, exercício do Eu na construção da personalidade íntima.

Marco concetual e eixos teóricos

O corpo teórico que consubstanciou o presente estudo assentou em três eixos, dos quais foram selecionados alguns autores e peças fundamentais, que caracterizam a evolução das linhas de pensamento subjacentes a cada um deles:

1º Eixo – A leitura como apropriação e em relação com um contexto de ação

Para Pierre Bourdieu (1979, 1987, 1997) o meio social de origem, família e percurso escolar são variáveis que determinam, classificam, identificam a propensão para a leitura de cada grupo social. Por outras palavras, interrogar sobre as condições de possibilidade da leitura, equivale a se interrogar sobre as condições sociais de quem lê e as condições sociais da produção de leitores. Quanto a Roger Chartier (2001, 2003) o acento tónico deve ser colocado nas formas de apropriação dos textos, socialmente contrastantes. E ainda aduz que:

- Ler é uma prática inscrita nos espaços, usos, gestos e hábitos, os quais devem ser pensados em função da descontinuidade das trajetórias históricas.

- A leitura deve ser encarada como um ato criador e rebelde, apesar das estratégias do autor.

Deve-se a Michel de Certeau (1988) a ideia básica de que a leitura como transgressão, apropriação, invenção, produção de significados, vai para além da reprodução social, procurando marcas distintivas nas formas de apropriação dos textos, nas representações, funções e usos da leitura. Finalmente, Bernard Lahire (2004) perfilha um conceito de multiplicidade da leitura, inscrita em diferentes contextos de ação e cujo significado se inscreve nesses contextos.

2º Eixo – Objetividade e subjetividade nas histórias de vida

Parte-se do conceito de interação sujeito/investigador, onde o primeiro fornece o conhecimento vivencial e o segundo estabelece os procedimentos, objetivos e análise, ambos trabalhando para a reconstrução do vivido e para a subsequente construção de conhecimento. Franco Ferrarotti (2003) perfilha a ideia de que a história de vida corresponde a um resgate da existência real e objetiva da subjetividade através da recuperação do desenvolvimento do quotidiano, inserido no processo histórico, social e cultural. Deste ponto de vista, a história de vida é a expressão de uma história singular que individualiza a história social, sendo a sua expressão e o seu produto. Contudo, segundo Vincent de Gaulejac (1999), não se deve entender isto como um determinismo, considerando que entre a estrutura social e o indivíduo existem espaços de mediação onde os sujeitos podem criar ou reconstruir a sua vida.

3º Eixo – Indivíduo entre os determinismos sociais e as disposições evolutivas

A abordagem de Bourdieu inclui a análise da inter-relação entre as posições sociais ocupadas, as disposições e as diferentes tomadas de posição que os sujeitos levam a cabo, pelo que as práticas supõem relações específicas entre as estruturas incorporadas e as estruturas subjetivas. Assim, quando aborda a temática dos gostos e consumos culturais, Bourdieu (2001) afirma que estes revelam uma subordinação inconsciente (exercida por um poder simbólico) a uma hierarquia de valores e práticas. Já Bernard Lahire (2002) opta por uma análise microssociológica sobre a maneira como os indivíduos, submetidos à influência de diferentes focos de socialização, pensam e reagem em configurações particulares, providos de disposições evolutivas. Em síntese, podemos formular uma conceção de habitus como repertório de disposições incorporadas e continuamente construído, aberto a estímulos conjunturais, eventualmente transformadores. Em último lugar, aluda-se a Michèle Petit (2002), cuja linha teórica reside no aclarar do papel do texto na alimentação do imaginário, na construção da identidade. Segundo esta autora, a leitura permite ocasionar a recomposição das representações da própria história do indivíduo, do seu mundo interior e da sua ligação ao mundo exterior.

Problemática e objeto de investigação

O problema que se pretende equacionar, não se situa na mera (embora fundamental) aquisição de competências de descodificação de signos linguísticos e de transformação de uma mesma mensagem de um veículo para outro, mas sim na aproximação simbiótica de uma minoria de pessoas ao “status” que, necessária e incondicionalmente, implica o gosto pela experiência quotidiana de leitura, em relação a esse instrumento de comunicação que é a escrita. Porque o fazem e em que condições, quando a maioria da população ainda rejeita tal prática? No fundo, o que conduz esses indivíduos – crianças ou adultos, operários ou professores – a procurarem mais do que a satisfação funcional, utilitária da leitura, a não se resignarem com a imutabilidade das coisas e a que não haja nada para compreender, nada por mudar, nada de diferente por criar, nada para buscar do outro lado do espelho para que o mundo se transforme, mesmo que só através do imaginário da leitura?

Investigar sobre as razões de ser da leitura equivale a investigar sobre os efeitos que os leitores esperam obter da atenção orientada para a interpretação dos textos. As práticas leiturais, ao nível da evidência pragmática, procuram a obtenção de algo que vale pela sua utilidade imediata no meio onde cada um de nós se insere, usando a leitura como instrumento de sucesso adaptativo a uma sociedade baseada no pressuposto de um certo grau de competências cognitivas. Tal significa que a leitura tem um valor instrumental incontestável quando se estabelece uma ligação a qualquer coisa de substancialmente utilitário. Como é óbvio estas referências respeitam a leituras vulgares praticadas no decurso da vida quotidiana dos indivíduos. Noutra escala, mais elaborada, podem-se observar práticas leiturais onde os efeitos procurados são diretamente confrontados com textos condensadores de dados ou de grelhas de raciocínio cujas características suscitam uma leitura mais exigente do ponto de vista da captação das significações ali presentes. Aqui incidiu a presente investigação, considerando ainda as funções que são atribuídas a este tipo de leitura: função de evasão, função documental ou informativa, função profissional e função estética, ligadas ao imaginário, ao conhecimento e ao prazer literário.

Nesta investigação procura-se reconstituir, por um lado, o itinerário de leitor de cada um dos entrevistados, distinguindo os períodos, os momentos-chave, os livros-charneira, as eventuais “conversões” à leitura. Por outro lado, procurou-se distinguir, durante a trajetória biográfica, aspetos da história familiar, do percurso escolar, da carreira profissional, dos momentos de rutura, etc.. Enfim, os pontos fulcrais de cada percurso de vida que pudessem ser significativos para este estudo: a ligação entre itinerário de leitor e trajetória biográfica mostrou as incidências daqueles parâmetros sobre as práticas de leitura. Assim, foi pesquisada a coerência sincrónica e diacrónica de itinerários de leitores na lógica dos hábitos, das (in)coerências, das transições, convenções, ruturas, em função das ruturas biográficas e das lógicas relativamente autónomas de diferentes campos onde se inscrevem sucessiva ou simultaneamente as trajetórias biográficas estudadas, tendo em conta o papel exercido pelos mediadores públicos (escola, bibliotecas, livrarias, imprensa, rádio, televisão; mas também partidos políticos, sindicatos, igrejas, etc.) e privados (família, amigos, etc.).

As histórias de vida apresentadas não descreveram exaustivamente o conjunto de casos e figuras imagináveis e, por outro lado, não serão apresentadas como monografias irredutíveis entre si: na medida do possível, foram colocadas em evidência – para além da sua própria singularidade – as variantes num conjunto de figuras possíveis e, pouco a pouco, deslindaram-se os princípios de inteligibilidade dessas histórias de leitores em toda a sua diversidade. O próprio âmago de cada uma das histórias relatadas conduziu a um trabalho sistemático de relato das práticas de leitura e das condições sociais de que cada um dos leitores estudados é um potencial produto (experiências escolares, profissionais, familiares, emocionais, afetivas, políticas, etc.), mas cuja singularidade pode conduzir a situações de transfúgio ou dissonância.

Objetivos e questões

Partindo da longa experiência de Bibliotecário da Rede de Leitura Pública portuguesa, em contacto diário com os leitores, percecionando as práticas leiturais, foram definidos alguns objetivos de investigação e formalizadas algumas questões relativas às práticas leitoras. Foram definidos os seguintes objetivos gerais:

- Explorar e conceituar as experiências de leitura, definindo uma inteligibilidade do gosto assumido por esta prática, através da busca de sentidos e representações que lhe são atribuídos pelos sujeitos do estudo e inscritos quer no campo social por estes ocupado, quer nas ocorrências das respetivas histórias de vida.

- Mais especificamente procurou-se identificar e analisar o peso das variáveis que podem enformar a aquisição do gosto pela leitura: determinismos socioculturais; mediadores públicos e privados; expetativas investidas; fatores psicoafectivos; ruturas, viragens e momentos-chave na história de vida, eventualmente conducentes a outras tantas ruturas ou descontinuidades, escolhas e interesses reconhecidos na leitura.

Para atingir aqueles objetivos, formularam-se algumas questões:

- Em que bases assenta a aquisição do gosto pela leitura manifestado pelos chamados grandes leitores, numa sociedade onde esse gosto é cada vez menos cultivado?

- Como explicar as dissonâncias ou situações de transfúgio num grupo de grandes leitores, social, escolar e culturalmente heterogéneo?

- As práticas de leitura são homogéneas e imutáveis, independentemente do contexto onde são produzidas e do período da história de vida?

- O leitor (e, consequentemente, o hábito de leitura) é um mero produto da sua origem social, familiar, bem como do seu percurso escolar, ou existe espaço para um trabalho de construção/reconstrução, de singularização do sujeito?

Metodologia

Para atingir os objetivos mencionados e obter resposta para as questões elaboradas, inquiriu-se um grupo de grandes leitores de obras literárias de duas Bibliotecas Municipais nos arredores de Lisboa (Vila Franca de Xira e Loures), reunidos sob o leque de uma amostra contrastada de idades (entre 45 e 71 anos), sexo, escolaridade (do 4º ano de escolaridade até ao Mestrado), domínios do saber e profissões (operários, professores, administrativos, tradutores e domésticas). Estes sujeitos foram subsequentemente alvo de entrevistas semi-diretivas, dialógicas, cruzando a análise vertical de cada caso individual com a análise horizontal, comparativa, da totalidade do grupo. As entrevistas, atuando como uma maiêutica, deram corpo à análise do objeto de estudo, segundo os seguintes parâmetros:

-Determinantes, sentidos, formas de apropriação, usos e representações da leitura, inscritos nas histórias de vida, as quais, no caso presente, atuaram como uma hermenêutica.

- Formas de apropriação dos textos, teoria da leitura e diversidade dos suportes documentais.

- Padrões comuns e fatores de singularidade detetáveis no conjunto das entrevistas.



A planificação e a realização das entrevistas obedeceram a algumas exigências:

- Remontar às experiências socializadoras e práticas desencadeadas ao longo da vida, em confluência com as práticas atuais, avaliando assim a génese e as transformações do repertório de disposições para a leitura que fazem parte do património dos leitores.

- Captar as redes de sociabilidade.

- Evidenciar tensões, crises, factos ou momentos críticos, eventualmente atuantes sobre as disposições.

- Procurar motivações, reflexões, sentimentos e interpretações; buscar a expressão de pulsões que os sujeitos trabalharam interiormente e que pudessem ser oportunidades de expressar modelos, valores ou normas a que correspondem determinadas disposições.

Percursos de vida e evolução leitora

Reportando à análise das entrevistas, os dados obtidos permitem delinear os seguintes contornos e encontrar uma sequência processual na evolução leitora: Durante a infância surgiu o desejo de ler, associado a um embrionário gosto pela leitura, onde, a par da audição de textos em família, a banda desenhada de cariz popular ou contida nos fascículos, revistas ou suplementos de jornais diários adquiriram uma particular importância. Passando à adolescência, conclui-se que esta refletiu uma natural autonomia das opções de leitura, sendo a família secundarizada pelo papel desempenhado pelos amigos e conhecidos. Os leitores dão início a um período de busca de identidade, onde os textos de ficção, desde os romances de conteúdo sociopolítico à chamada subliteratura, contribuem para a estruturação do Eu.

Nesta fase de socialização primária, foram diversos os fatores influentes sobre o hábito de leitura dos entrevistados: história familiar e pessoal dos pais; relacionamento com os pais, a escola e a leitura; o modo como os sujeitos assumiram a sua condição de vida; os acontecimentos críticos (positivos e negativos); as normas de comportamento e valores inculcados. O papel iniciático de amigos, conhecidos e professores, destacando-se, neste último caso, a relevância atribuída aos professores amantes da leitura e capazes de transmitir a sua paixão através de pedagogias criativas. Assim, em alguns casos foi possível ultrapassar a relação estabelecida entre as leituras obrigatórias e o desprazer da leitura.

Com base nos casos observados conclui-se que a socialização secundária, vivida entre a adolescência e a idade adulta, excetuando um caso relacionado com uma instituição religiosa, manifestou-se de uma forma pouco relevante. Já o mesmo não se pode dizer dos contextos, acontecimentos cruciais ou epifanias vivenciadas pelos sujeitos, desde as experiências familiares traumáticas, passando pela reclusão prisional, até aos desfasamentos disposicionais relacionados com a situação conjugal, ocasionadores de formas não lineares da trajetória leitural. E, aqui, as narrativas revelam, a par de uma representação e de uma dimensão normativa, um eixo axiológico da leitura, representada como algo de intrinsecamente bom, positivo: uma leitura expressa num duplo movimento de isolamento e abertura a outros tempos, lugares e espaços de realização simbólica e metafórica dos leitores, simultaneamente criadora de sentidos, solidificadora da identidade e reveladora da consciência social e política.

Quando as narrativas dos entrevistados dão lugar à menção dos géneros, autores e títulos preferidos, onde os textos iniciáticos ocupam um lugar fundamental (predominantemente romances, seguidos de poesia, contos e diários), desde os clássicos até à literatura de massas, dá-se início, mais ainda do que nas referências ao papel desempenhado pela escola, a um acentuado e inegável referencial de dados reveladores dos mecanismos da reprodução social, da legitimidade cultural e da distinção social, que encontraram eco nas representações, apropriações, usos, sociabilidade, lógicas de prescrição e transmissão da leitura, e, por fim, nos demais consumos culturais que foram brevemente abordados, definindo padrões de práticas e consumos, associados, respetivamente, aos leitores com maiores ou menores capitais social, escolar e cultural.



Usos e formas de apropriação dos textos

Os dados obtidos permitem amenizar a ideia de um destino cultural/leitural definitivamente traçado, ao verificar que, na maioria dos casos, os usos e formas de apropriação dos textos, normalmente associados a determinada categoria de leitores, com mais ou menos recursos escolares e culturais, cruzaram-se, combinaram-se, de forma heterogénea. Assim, por exemplo, constata-se a existência de trocas assimétricas entre as chamadas práticas dominantes, ligadas a uma cultura dita legítima, e as práticas dominadas, ditas ilegítimas, conduzindo a manifestações de dissonância na reprodução cultural e à expressão da singularidade dos sujeitos. Com efeito, um mesmo leitor evidenciou práticas dissonantes em diferentes contextos. No que concerne aos gostos propriamente ditos, alguns revelaram-se idênticos em indivíduos portadores de desiguais capitais social, escolar e cultural.

Sendo assim, estamos perante resultados dissonantes ou de transfúgio, face ao tradicional binómio estabelecido entre o gosto pela leitura e os capitais escolar e cultural, numa forma de balanceio entre os mecanismos da reprodução social, a legitimidade cultural e a subjetividade dos leitores, que, no que concerne à leitura, se expressou no uso de textos legítimos e ilegítimos, com diferentes ou idênticas formas de apropriação e uma comum dimensão subjetiva, criando condições para uma construção do sujeito que pode, num nível simbólico, extravasar os constrangimentos da reprodução cultural.

O rumo da apresentação conduz, neste ponto, aos usos da leitura por parte dos entrevistados, usos esses que assumiram um cariz minoritariamente utilitário, profissional e estético. Inversamente e associado ao prazer tout court, depara-se com uma leitura de evasão que, paralelamente à aquisição de conhecimentos, é largamente maioritária e transversal ao grupo estudado, independentemente dos capitais escolar e cultural de cada indivíduo.

Esta assunção maioritária do gosto, do prazer por uma leitura que, à falta de melhor termo, classificamos de evasão, revela uma apropriação e uso com os seguintes contornos: valorização do conteúdo através da realização imaginária vivida por uma procuração no mundo do texto; experiência de construção do Eu, por imitação, emancipação ou rejeição dos modelos expressos nos textos literários; duplo processo de separação e captação, ou mobilidade, no cruzamento da subjetividade do leitor com as representações textuais.

Gosto e habitus leitor

Os detetados usos da leitura e a apropriação dos textos assentam em três grandes itens: prazer estético; evasão; conhecimento/didática/evasão.

O prazer estético está associado a valorização do puro prazer da forma (o prazer do texto) e da distância reflexiva; a compreensão das alusões, das redes de referências cruzadas tecidas pelo autor (prazer e erudição), dos signos de pertença à elite; a leitura de textos para valorizar, analisar, comparar criticamente.

A evasão ganha sentido como valorização do conteúdo através da realização imaginária vivida por procuração no mundo do texto; e constitui uma experiência de construção do Eu, por imitação, emancipação ou rejeição dos modelos expressos nos textos literários. Há assim um duplo processo de separação e captação, ou mobilidade, no cruzamento da subjetividade do leitor com as representações textuais.

Admite-se por fim um item cumulativo que congrega conhecimento, didática e evasão. O complexo formado por este item abrange os seguintes aspectos: aprendizagem prática das coisas humanas em situação imaginária; mundo do texto reinvestido na experiência da vida social e individual; familiarização com a linguagem escrita, expressa nas maneiras de falar e conceber as trocas de linguagem; construção e reconstrução identitárias, questionando as estruturas do habitus através da criação de espaços de indeterminação face ao campo dos possíveis.

Particularmente interessante foi o paralelismo estabelecido entre leitura de evasão e a aquisição de conhecimentos, fornecendo à ficção literária, e em especial ao romance, um conteúdo de aprendizagem prática das coisas da vida em situação imaginária, onde o mundo do texto é reinvestido na experiência da vida social e individual, funcionando mesmo como uma forma de construção/reconstrução identitárias, ao questionar as estruturas do habitus através da criação de espaços de indeterminação.

No entanto, em face destas experiências leitoras podem aventar-se as características principais do hábito leitural. A leitura está inscrita no mundo individual e não só na matéria estritamente textual, na medida em que os leitores surgem como agentes ativos que realizam um trabalho simbólico e produtivo com o texto, na busca de sentidos mais complexos e da elaboração/reelaboração de disposições e identidades, resultado das intertextualidades e das polissemias reconhecidas na leitura dos textos, a partir das suas histórias de vida. Como ato individual e intersubjetivo a leitura constitui uma instância necessária ao ato de reconhecimento individual, da consciência do Mundo e de outras consciências – um Eu no Outro, através da descoberta de novos lugares, personagens, situações e soluções. A leitura é experiência libertária, no jogo dos possíveis, através de mudanças, deslocações ficcionadas e metafóricas, vividas independentemente da posição social do leitor e contribuindo para a estruturação da identidade pessoal. E, ao estarem inscritos no mundo individual e social, os interesses, gostos e expetativas relacionadas com a leitura, mudam ao longo da vida e são um produto da totalidade das interações e intercâmbios que compõem as várias matrizes socializadoras e experiências subjetivas do leitor no seu trajeto, num paradigma de leitor e leitura evolutivos, plurais, complexos.



Concluindo

As situações vividas, as experiências de cada sujeito podem combinar-se sincrónica e diacronicamente, despoletando, reforçando ou atenuando o gosto ou a intensidade da leitura, sujeita à interação de forças internas (disposicionais) e forças externas (contextuais). Isto ficou demonstrado através das histórias leitoras analisadas neste estudo. Está-se perante um leitor complexo e potencial detentor de um conjunto heterogéneo de práticas de leitura evolutivas, não claramente redutíveis aos determinismos sociais, graças aos múltiplos fatores (ocasiões de desajuste ou crise com reflexos sobre a ação; diferentes contextos, circunstâncias ou acontecimentos) intervenientes na sua trajetória de vida e, em particular, no seu itinerário de leitura.

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