O elogio do acto narrativo: encenação e artifício em Contes de la bécasse de Maupassant1

The Compliment of the Narrative Act: Staging and Artifice in Maupassant’s Contes de la bécasse

Carla Marques DATIA

Universidade do Lisboa, Portugal

csmdatia[at]gmail.com

Impossibilia. Revista Internacional de Estudios Literarios. ISSN 2174-2464. No. 19 (mayo 2020). Miscelánea. Páginas 116-140. Artículo recibido 24 octubre 2019, aceptado 19 marzo 2020 publicado 30 mayo 2020

Resumo: Pretendemos fazer uma leitura de Contes de la bécasse de Guy de Maupassant que nos permita esboçar a hipótese de que a unidade da obra reside num elogio do acto narrativo. Para tal enumeramos os artifícios narrativos usados pelo autor para conceber o seu trabalho ficcional. O conceito de artifício, entendido como a capacidade técnica ao serviço do exercício narrativo, manifesta-se no “emprego de meios ou processos engenhosos” mais evidentes em alguns dos Contes de la bécasse, tais como: “La bécasse”, “La folle”, “Menuet”, “La peur”, “L’aventure de Walter Schnaffs” (publicados inicialmente no Gil Blas, 1882), “En mer” e “Ce cochon de Morin”.

Palavras-chave: Maupassant; Contes de la bécasse, conte, artifício narrativo, estratégia autoral

Abstract: We intend to prove that the unity of Guy de Maupassant’s Contes de la bécasse relies on the compliment of the narrative act. In order to demonstrate that argument we enumerate the narrative artifices used by the author to conceive his fictional work. The concept of artifice is used as the technical ability to serve the narrative act and it appears in the “employment of ingenious means or processes” more obvious in some contes such as: “La bécasse”, “La folle”, “Menuet”, “La peur”, “L’aventure de Walter Schnaffs” (initially published in Gil Blas, 1882), “En mer” and “Ce cochon de Morin”.

Keywords: Maupassant, Contes de la bécasse, conte, narrative artifice, authoral strategy

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I. Introdução: emergência da obra e elogio do acto narrativo

L’art de Maupassant est de créer l’illusion que l’écrit peut se résoudre en dire et d’être alors conteur au sens le plus fort du terme (Forestier, 2008: XXVI).2

Procuramos identificar em Contes de la bécasse, de Guy de Maupassant (Normandia, 1850-1893), todas as estratégias narrativas usadas pelo autor de modo a conferir à obra uma unidade residente na exploração genológica da forma conte3 indiciada a partir do título e, consequentemente, no elogio do acto narrativo. Salientamos a importância do conceito de artifício ao abrigo do qual a capacidade técnica serve o exercício narrativo com um conjunto de recursos, tais como a escolha dos textos que compõem a colectânea e a inserção de “La bécasse” como moldura narrativa. Este texto inaugural funciona como fio condutor estratégico para instituir o ritual de contar, acto determinante na construção intencional da obra e comprovado na presença de narrativas encaixadas e de um universo diegético de narradores que privilegiam o acto de contar. Para demonstrar essa prevalência alguns dos textos são analisados a título exemplificativo.

O corpus da produção literária de Maupassant apresenta-se como mostruário da problemática que o género conte percorre até à actualidade. O conte moderno, após tentativas teóricas que provam a instabilidade do conceito, caracteriza-se, também no caso francês, pela permeabilidade das suas fronteiras e por ser um género “ambíguo”, “nebuloso” e “camuflado” (Piña-Rosales, 2009: 467), tornando-se num campo fértil para experimentações literárias que ostentam os seus artifícios constitutivos. A evolução dos géneros literários sofre mutações ao longo do tempo e o período durante o qual Maupassant produz os seus textos, inicialmente publicados em jornais e depois agrupados em colectâneas, é caracterizado por profundas alterações na prática do género conto literário. Ao compôr Contes de la bécasse o autor antecipa a mudança na forma e génese que este género viria a sofrer. A brevidade associada ao exercício narrativo desta forma literária potencia a sua intensidade e abre caminho à exploração de técnicas que contemplem os artifícios narrativos, além de jogar com as expectativas do leitor. Por esse motivo, lemos em Contes de la bécasse a hipótese de que a unidade da obra reside num elogio do acto narrativo alimentado pelo recurso a vários artifícios.4

Julgamos fundamental o contexto de publicação dos textos, primeiramente em jornais e depois agrupados em colectânea, pois tal pode evidenciar uma estratégia autoral:

[…] la correspondance de l’écrivain infirme cette conception : plusieurs lettres témoignent d’une attention vigilante à la place de certaines nouvelles dans le volume et prouvent que les recueils ne sont pas la simple collection de textes que seul le hasard réunirait […].
Le tout est consciemment orchestré par l’écrivain […] (Grandadam, 2007: 124).5

A orquestração da obra efectuada pelo próprio autor demonstra-se até no alargamento das temáticas propostas, pois este acrescenta dois textos (“Saint-Antoine” e “L’Aventure de Walter Schnaffs”) ao manuscrito original de Contes de la bécasse, após assinado o contrato com Édouard Rouveyre e G. Blond (Juin, 1999: 7). Ao verificar o contexto em que a obra emerge tomamos como ponto de partida para esta reflexão o conceito de artifício, entendido como capacidade técnica ao serviço do exercício narrativo. Maupassant exercita a ficção narrativa ao abrigo do artificialismo que lhe é implícito, revelando uma destreza técnica e artificiosa capaz de edificar um universo diegético em camadas, recheado de níveis narrativos oscilantes e narradores hábeis. A componente inventiva é a base da criação dos textos e visa consolidar a compositio da obra, contribuindo para que:

The narrative form, then, signifies the basic cleft in the artistic imagination […]. It permits the author to express structurally the dilemma of the creative mind caught between the desire for the fully formed artifact, an entity that betokens certitude, and the awareness of the prevarication inherent in any such creation (Moger, 1985: 323).6

Também é possível falar de artifício do ponto de vista macroestrutural da obra, uma vez que se traduz num elogio do acto narrativo como criação e, por isso, valorizado em si mesmo. A sua artificialidade acompanha “a evolução da literatura e a consciência literária” que “chama a atenção […] sobre o aspecto singular, artificial e problemático do acto narrativo” (Genette, 1971: 255). O elogio do acto narrativo é anunciado desde o início da obra com “La bécasse” e contempla, necessariamente, este exercício ficcional pelo valor de moldura narrativa que ocupa.7Assim se vão criando as condições para que a obra surja envolta numa espécie de cenário construído sob o desígnio de uma vontade totalizadora:

C’est en 1883 que Guy de Maupassant signe avec Édouard Rouveyre et G. Blond un contrat d’édition pour un recueil de contes intitulé les Contes de la bécasse, et ce contrat precise qu’il doit s’agir là d’un volume de même dimension que Mademoiselle Fifi, […] qui conduira l’auteur à joindre aux récits d’abord prévus deux autres nouvelles : Saint-Antoine et L’Aventure de Walter Schnaffs […].
La saveur des choses lui importe plus que la querelle des idées. Rien ne dit mieux cela que le prière d’insérer écrit par Maupassant lui-même pour le lancement de Contes de la bécasse. On y lit ceci : « Ce qui distingue particulièrement ce dernier ouvrage de l’auteur de La Maison Tellier et d’Une vie, c’est la gaieté, l’ironie amusante ». Le premier récit du livre, Ce cochon de Morin, ne peut manquer de prendre place à côté de Boule de suif. Et les nouvelles qui suivent donnent toutes des échantillons très divers de la bonne humeur railleuse de l’écrivain (Juin, 1999: 7-9).8

Além dos artifícios retóricos e da disposição pensada do conjunto, existem procedimentos de reescrita em “La bécasse” que merecem destaque. O texto condiciona a leitura da obra, pois funciona como moldura narrativa e é o autor quem controla sobre o modo de leitura da mesma. Simultaneamente, faz-nos reflectir acerca da intenção autoral quanto ao conjunto de textos:

La première modification touche au fractionnement en deux textes de la nouvelle « La folle » […] On peut tirer parti de la transformation duu volet introducteur de la nouvelle destinée à la presse en un conte à fonction inaugurale […] il est aussi possible de penser qu’à la date de parution de « La folle » dans Le Gaulois Maupassant, qui avait déjà publié treize des quinze récits du recueil, avait déjà anticipé le volume à paraître et savait que la première partie de ce texte constituerait la nouvelle initiale des Contes de la bécasse (Grandadam, 2007: 210).9

“La bécasse” foi reformulado para publicação na colectânea transformando-se em narrativa-quadro para o conjunto. O texto já tinha sido publicado no jornal Le Gaulois a 5 de Dezembro de 1882 e constituía, à data, um texto conjunto com “La folle”, servindo de moldura a este segundo com a frase “Et voici que raconte M. Mathieu D’Endolin”.10 Quando agrupados em Contes de la bécasse, a frase citada transformou-se em “Voici quelques-uns de ces récits” (Maupassant, 1999: 26)11 de modo a abarcar as restantes narrativas. “La bécasse” cria o contexto para acolher todas as narrativas que se seguem. O processo de reescrita e organização inerente à constituição do volume alimenta a tese de efeito criado, intencionalmente, por parte do autor e que, ao contrário do que “La bécasse” indicia, este não reside no fio condutor temático da caça.12 O motivo da caça serve para criar um cenário concomitante com a presença de um auditório e oradores, mas cada texto possui o seu próprio esquema de níveis narrativos: o seu microcosmos é construído com recurso a encaixes narrativos, cada um relatando uma história nunca retomada em mais nenhum dos contos, embora “La folle” simule recuperar “La bécasse” através do recurso à memória: “les bécasses me rappellent” (Maupassant, 1999: 49)13 apresenta personagens únicas dentro do seu universo. Contudo, a unidade da colectânea reside na pertinência do acto narrativo enquanto demanda totalizadora do conjunto.

“La bécasse” reclama a importância do acto de narrar/contar emergente na encenação do ritual contístico. A ficcionalização da oralidade, através das histórias contadas pelos vários oradores transformados em narradores, faz emergir a preponderância do acto narrativo encenado num alegado convívio e manifesto através da escrita. No elogio desse acto surge o “esprit lettré” (Maupassant, 1999: 23)14 do barão Ravots, responsável por instaurar o ritual do conto através da solicitação para que todos contem uma história, ainda que nesse convite resida a abertura a contaminações de género pela polivalência de termos proposta. Ele adora não só “contes” como “petits contes polissons, et aussi les histoires vraies arrivées dans son entourage” (1999: 23)15 ou, apenas, “une histoire” (26)16. A personagem começa por exigir a cada um dos seus convivas “le récit fidèle de sa journée” (24)17 mas o rumo das histórias contadas acaba por seguir contornos de “invraisemblables aventures” (25).18 A informação contida no texto inaugural da colectânea ilumina, retroactivamente, o título que ela exibe por se ter apropriado do “costume” da casa: “il existait dans la maison une vieille coutume, appelée Conte de la bécasse” (25)19 e tal ocorrência não parece ser mero acaso. Em primeiro lugar, o título da colectânea lança os indícios da atmosfera que paira na obra (assim supomos inicialmente); em segundo lugar, no título do primeiro texto e no seu interior encontramos a ligação ao título da obra (apaziguando-nos, levando-nos a pensar que há uma linearidade temática) e, em terceiro lugar, no ritual descrito em “La bécasse” designado “Conte de la bécasse”, sedia-se a aparente e harmoniosa justificação plena do título da colectânea. O cenário está lançado e, aparentemente, tudo se move no sentido de receber e encaixar todos os textos. Mas, na verdade, o título alcança maior impacto junto do horizonte de expectativas da leitura ao defraudá-lo:

Les préfaciers des Contes de la bécasse sont partagés. Sur quatre commentaires critiques, trois ( signés de L. Forestier, de R. Bismut et d’H. Lassalle ) voient dans le titre une promesse d’unité narrative. Promesse vite déçue pour H. Lasalle, car le titre, dit-elle en substance, en créant un certain horizon d’attende la chasse – suscite une lecture déceptive […] (Grandadam, 2007: 53).20

Com uma sugestão temática frustrada, parece-nos existir um intuito estético no acto de agrupar os textos e o motivo da caça serve apenas de pretexto para que se contem histórias. O acto de contar é o grande homenageado pela obra e, por isso, a instituição do ritual que apela ao conto remete-nos para o próprio título dela. Julgamos que a perda do vínculo à caça como unidade temática exclusiva, pretexto para que se contem histórias, pode ser lida como uma quebra de entusiamo dos caçadores substituída, gradualmente, pela necessidade sedutora de se tornarem oradores/ouvintes. É no prazer do acto de narrar e/ou ouvir que o entusiamo prolifera: “Et tous, étonnés, mais réciproquement crédules, s’extasiaient” (Maupassant, 1999: 25),21 tal como a ansiedade “tout le monde se taisait, dans l’anxiété de l’attende” (1999: 25).22 O barão Ravots consegue “susciter l’humeur et la verve conteuse de ses hôtes (…) il instaure un véritable rite du conte” (Grandadam, 2007: 195)23 e acaba por fazer com que as histórias se encaminhem para a pura fruição estética dos intervenientes e do leitor. A personagem, peça fundamental na composição do cenário diegético, é a figura capaz de suscitar “la jouissance esthétique, un plaisir oral” (2007: 196).24

II. Encenação e artifício em Contes de la bécasse de Maupassant

A colectânea ostenta capitularmente o género conte no seu título. A alusão à unidade temática da caça produz uma ilusão e, em vez disso, a unidade dos textos apresenta-se na sua componente de elogio da narrativa e da própria opção pelo género escolhido. O título é, no nosso entender, parte da estratégia de construção que atribui à obra a sua vertente de artifício. Pensar a questão do título em conjunto com “La bécasse” recupera uma questão central: a distinção entre “contes”/contos apresentados como sinónimos de “petits contes polissons”25 e “histoires vraies”26 surgindo como sinónimo de “récit fidèle de sa journée” (Maupassant, 1999: 24)27 ou “aventures” (1999: 25).28 O texto inaugural faz-nos vislumbrar lampejos do tipo de narrativas dispostas ao longo da obra contendo, em certa medida, um catálogo terminológico.

À medida que progredimos na leitura dos contes, continuamos a ser confrontados com questões ligadas à terminologia dos textos, por vezes nos próprios títulos, como no caso de “L’Aventure de Walter Schnaffs”, outras vezes no interior das narrativas como em “Ce cochon de Morin”, onde surgem menções a “histoire”29 e “récit” (28)30 ou em “La folle” onde se caracteriza a natureza da história a ser contada como “sinistre anecdote de guerre” (49).31 No entanto, se recuperarmos o final de “La bécasse”, cuja importância é fulcral no âmbito da conjectura estrutural da obra, a última frase propõe-nos a presença abrangente de “récits”32: “voici quelques-uns de ces récits” (26),33 tal designação pode indiciar a presença de um misto dentro da genologia matriz do conte. O recurso a várias terminologias para designar os textos parece viabilizar a sua condição ficcional, uma vez que se apresenta ao abrigo de um título indicador da categoria genológica conte. O acto narrativo simulado na obra baseia-se na matriz oral do conto tradicional,34 pois a moldura narrativa introduzida com “La bécasse” institui a importância atribuída ao acto de contar oralmente. A emergência do conte associado ao “relato como sedução e aglutinação comunitária” (Lopes & Reis, 2000: 79) compõe o cenário constitutivo da atmosfera descrita em “La bécasse”.

No género conte estão em jogo a oralidade e a escrita, pois “le passage de la parole à l’écriture est sans doute une des caractéristiques les plus fortes du genre” (Carlier, 1998: 49)35 e a mediação entre ambas depende da habilidade delegada ao(s) narrador(es). O narrador é a entidade manipuladora dentro e fora do texto, ele desempenha um papel fundamental na composição do cenário narrativo.36 Podemos dizer que “a principal preocupação do autor é criar um efeito ao compor a colectânea porque a ficção é privilegiada no acto de narrar e, por isso, o elo de ligação entre todos os textos da colectânea repousa na importância atribuída ao ‘próprio acto narrativo” (Diogo, 1994: 55) instaurado com “La bécasse”.

As contaminações de um possível género puro de matriz tradicional e carácter oral encontram confirmação na presença de textos como “En mer” ou “La peur” onde prevalece a apologia da tensão (Neuman, 2006: 169-184) ao concentrar a acção sob os desígnios de uma atmosfera trágica ou com resquícios fantásticos. Estas características são determinantes no conto moderno e confirma-se, deste modo, a abertura do género à convocação de vários recursos que se afastam da matriz tradicional. O texto “En mer” pode funcionar como demonstração da permeabilidade de géneros literários uma vez que parte de uma notícia de jornal, posteriormente ficcionada na narrativa encaixada que origina, onde se salienta o elogio do acto narrativo com recurso à inventio. O modo como o texto se constrói é ilustrativo do procedimento inventivo: em primeiro lugar, surge a notícia de jornal lida em conjunto “on lisait” (Maupassant, 1999: 117);37 em segundo lugar, formula-se a hipótese relativa à identidade do “pauvre homme roulé” (1999: 118)38 feita na primeira pessoa do singular e, a partir da hipótese de identificação deste homem com Javel, nasce a narrativa que descreve o episódio de uma tragédia anterior. A atmosfera trágica criada neste texto é reforçada pela violência da tempestade descrita: “le chalutier repartit encore, courant sur le dos des flots, ballotté, secoué, ruisselant, soufleté par des paquets d’eau, mais gaillard, malgré tout, accoutumé à ces gros temps” (119).39 “En mer” introduz um certo sadismo no modo como se descreve a amputação do braço “il se mit à couper lui-même. Il coupait doucement, avec réflexion, tranchant les derniers tendons avec cette lame aiguë” (123).40 Podemos até dizer que se insinua algum humor negro no modo como se efectua “l’enterrement du bras détaché” (125).41

A variedade de artifícios na construção das narrativas é de grande fôlego porque, em oposição a certa tragicidade, também se encontra ironia e humor. “L’Aventure de Walter Shnaffs”, por exemplo, regista os incidentes (cómicos) de quem se julga “le plus malheureux des hommes” (199),42 mas não passa da caricatura de um cobarde cujo pecado é a gula. Retoricamente, as várias interrogações que assaltam o pobre Walter Schnaffs funcionam no sentido de ilustrar, com cunho humorístico, o medo que sente não só com o que acontece mas, sobretudo, com os cenários hipotéticos que imagina. O uso do condicional constrói o espírito cobarde do anti-herói – “Si seulement j’étais prisonnier!” (203)43 –, do mesmo modo que o ritmo da narrativa acompanha as suas hesitações.

Descuidar a estética do conto enquanto forma breve ao abordar Contes de la bécasse seria imprudente porque nesta escolha genológica (incrustada no título) reside o arsenal retórico e estilístico dos textos. Nesse âmbito, pensamos que a construção do cenário narrativo é permeável à problematização terminológica e consequente abertura a uma nova concepção de conte. A par da existência do intuito de criar alguma “unidade de efeito ou impressão” (Poe, 1842: 298-300) que repousa, no nosso entender, naquilo que podermos designar por efeito de conjunto da obra, existe o necessário recurso à “invenção, criação, imaginação e originalidade” (1842: 298-300) necessários à confecção laboratorial do bom conto. Tais requisitos encontram-se nas páginas de Contes de la bécasse e, por isso, os textos chamam a si elementos pertencentes à estética das formas narrativas breves. Contudo, não podemos esquecer que cada narrativa reflecte, à sua própria medida, “le plaisir de dire” (Forestier, 2008: 31)44 e é nessa característica fundamental, segundo acreditamos, que reside a apologia não só do acto de contar/narrar como do própria figura capaz de o fazer, ou seja, o contador de histórias disseminando pelo complexo jogo de narradores presentes em cada texto.

A estratégia narrativa em Contes de la bécasse é, então, tecida com alguma complexidade porque nos acena com uma espécie de mise en abyme narrativo que inquieta o leitor:

Usant du même artifice narratif ( c’est-à-dire: rendant incertaine l’identification du narrateur ) et faisant curieusement fusionner de surcroît l’auteur et le narrateur par le biais d’une mise en abyme quelque peu spécieuse, il jette un instant le trouble dans l’esprit du lecteur [...] (Oswald, 1996: 113). 45

O autor ostenta uma construção pensada da obra e de um cenário que a envolve:

[...] fala-se de estratégia sempre que se concebe uma atitude ou conjunto de atitudes organizativas, prevendo determinadas operações, recorrendo a instrumentos adequados e opções tácticas precisas, com o intuito de se atingir objectivos previamente estabelecidos [...].
Deste modo, a adopção de uma estratégia textual constitui uma atitude que mediatamente interfere na construção do texto: optando por determinado modo ou género literário [...].
Dir-se-á, então, que a activação da narratividade configura um cenário comunicativo específico, com particulares implicações pragmáticas e, desde logo, solicitando estratégias ajustadas a um tal cenário [...] (Lopes & Reis, 2000: 142-144).

De acordo com o que optámos por citar, estão em jogo várias questões subjacentes ao processo de construção da colectânea. Um objectivo primeiro do autor seria criar a ilusão de um agrupamento de textos sob um rótulo que, de forma mais ou menos evidente, seduzisse o leitor através da sugestão de uma unidade temática (a caça). No entanto, essa sugestão ilusoriamente proposta no início da colectânea é, também, um artifício que joga de modo directo com as expectativas do leitor e são acrescentadas várias amostras de temáticas distintas:

Sacrifiant volontairement l’unité possible des Contes de la bécasse autour du motif de la chasse, que ce titre aurait pu chapeauter dans une cohérence sans faille, Maupassant préfère ne garder que cinq des quinze contes pour leur joindre d’autres thèmes : la guerre et les forces noires qu’elle peut déchaîner, le sort d’un enfant nés « daccouplements d’aventure », l’amour démesuré et sans retour [...] (Grandadam, 2007: 194). 46

A variedade temática proposta em Contes de la bécasse encontra-se unida, contudo, pela importância atribuída ao acto de contar/narrar histórias com recurso à memória de cada um dos membros do auditório. A união dos textos é genológica na medida em que o género conte proposto na colectânea, se constrói com vários mecanismos pertencentes a diferentes domínios e todos visando o elogio do acto narrativo. Neste contexto, o apelo à memória dos oradores surge encenado dentro da acção narrativa e faz parte da inventio ou, dito de outro modo, a sugestão da necessidade de recorrer à memória, enquanto cada orador conta uma história, pressupõe a “originalidade (ingenium) do orador e do artista” (Lausberg, 2004: 91). Encena-se, então, a capacidade criativa do autor delegada nos vários narradores encarregados de contar histórias. Este cenário explora todos os recursos possíveis para construir uma complexa fórmula contística que elogia a ficção e o acto narrativo. A encenação do recurso à memória é evidente em “La folle”, onde expressões como “les bécasses me rappellent une bien sinistre anecdote de la guerre” (Maupassant, 1999: 49)47 ou “je me rappelle cella comme d’hier” (1999: 51)48 ilustram isso mesmo. Além disso, servem para encenar e marcar a distância temporal entre o acto lembrado e a narração. Simula-se, assim, a activação da memória recuperando o motivo da caça lançado em “La bécasse” e lança-se uma pista alusiva à natureza da história designada por “sinistre anecdote”.49 A tentativa de categorização do texto, ao atribuir-lhe uma proximidade tipológica, é um elemento desconcertante ao serviço dos artifícios narrativos, pois cria ambiguidade e manipula, em certa medida, a interpretação. Na voz do narrador, M. Mathieu d’Endolin, compõe-se uma narrativa repleta de interrogações que, no fundo, tentam justificar a descrição da personagem apresentada como “folle”50 e servem para criar uma atmosfera de mistério: “Que se passait-il dans cette âme désespérée ?”;51 “Songeait-elle aux morts ? Rêvasait-elle tristement, sans souvenirs précis ?” (50).52 O mistério adensa-se quando “la folle” desaparece e o narrador começa a formular hipóteses para perceber o que se passou. No outono, criado o distanciamento entre tempo e acção necessário, ao ver “les bécasses”, a personagem encontra “une tête mort”53 que em jeito de epifania o lembra da pobre mulher: “et brusquement le souvenir de la folle m’arriva dans la poitrine comme un coup de poing […] j’étais sûr, sûr, vous dis-je, que je rencontrais la tête de cette misérable maniaque” (54).54 A partir deste momento, desenvolve-se ainda outra narrativa assente na conjectura de M. Mathieu d’Endolin:

Et soudain je compris, je devinai tout Ils l’avaient abandonnée sur ce mate las, dans la forêt froide et déserte; et, fidèle à son idée fixe, elle s’était laissée mourir sous l’épairs et léger duvet des neiges et sans remuer le bras ou le jambé (Maupassant, 1999: 54).55

O texto encerra-se com alguma morbidez: “J’ai gardé ce triste ossement” (1999: 54)56 para poder recuperar a classificação que lhe havia sido lançada pelo narrador (“sinistre anecdote”).

A opção de Maupassant pelo uso do conceito conte reveste-se de uma tessitura particular porque o género está contaminado por características pertencentes a vários domínios. “La peur”, por exemplo, insinua a presença do fantástico através da sugestão do medo como algo associado ao inexplicável, conferindo alguma ambiguidade ao texto. Aliás, do ponto de vista meta-empírico, enquanto leitores, somos levados a sentir temor, gradualmente, em conjunto com a personagem.57 Importa-nos referir que, tal como o fantástico, supõe uma construção profunda da narrativa ao nível da exploração de todos os artifícios ao seu dispôr. Se pensarmos na presença do efeito fantástico devido à ocorrência de “um fenómeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por tipos e causas naturais e sobrenaturais” (Todorov, 1977: 26), julgamos válida esta presença em “La peur”. Neste texto assistimos à intensificação do pavor através da construção de uma gradação tensional58 e, ao mesmo tempo, a presença da ambiguidade detecta-se ao nível interpretativo e na instauração de uma espécie de debate em torno da definição do medo. O modo como essa definição é feita reveste o discurso de termos que propiciam a ambiguidade e abrem caminho à insinuação do fantástico:

La peur […] c’est quelque chose d’effroyable, une sensation atroce, comme une décomposition de l’âme, un spasme affreux de la pensée et du coeur, dont le souvenir seul donne des frissons d’angoisse. Mais cela n’a lieu, quand on est brave, ni devant une attaque, ni devant la mort inévitable, ni devant toutes les formes connues du péril: cela a lieu dans certaines circonstances anormales, sous certaines influence mystérieuses en face de risques vagues. La vraie peur, c’est quelque chose comme une réminiscence des terreurs fantastiques d’autrefois. Un homme qui croit aux revenants, et qui s’imagine apercevoir un spectre dans la nuit, doit éprouver la peur en toute son épouvantable horreur (Maupassant, 1999: 76-77).59

Esta introdução serve para criar uma atmosfera intensa no ambiente descrito ao longo da história. Compete ao “homme à figure brûlée” (1999: 76)60 descrever as experiências do sentimento de medo provenientes de causas inexplicáveis e, mais uma vez, o vocabulário usado é cautelosamente escolhido: “surpris par un inexplicable phénomène”,61 “mystérieux tambour”62 ou “roulement fantastique”63 (79) são alguns exemplos. O recurso à presença do presságio “la mort est sur nous” (79),64 concretizada na morte de um dos elementos por insolação, dá continuidade à atmosfera criada. O narrador experiencia, assim, “la vraie peur, la hideuse peur” (79).65 O crescendo desta ambiência instala-se no relato de outra experiência do medo, demonstrativa da exímia capacidade deste narrador que pretende apurar a experiência anteriormente descrita: “les ténèbres étaient profondes. Je ne vois rien devant moi” (81).66 A narração na primeira pessoa quase nos transporta para o interior da história: “je sentais bien qu’une terreur profonde tenait ces gens” (82)67 e obriga-nos, posteriormente, a regressar ao primeiro cenário descrito com a presença de sensações fortes desencadeadas por coisas vagas: “quelque chose d’invisible, d’inconnu, d’affreux sans doute” (83).68 O tom dramático deste narrador exalta a sua capacidade de contador: “et je vou jure qu’au fracas du coup de fusil que je n’attendais point, j’eus une telle angoisse du coeur, de l‘âme et du corps, que je me sentis défaillir, prêt à mourir de peur” (85).69 Os dois planos narrativos ajudam a fomentar a importância consciente do papel do “conteur” (80).70 Somos impelidos a comocionar-nos em conjunto com ele (e com o seu auditório): “malgré moi, un grand frisson me courut entre les épaules” (83).71 Neste texto, além da fissura que permeabiliza a sugestão do fantástico, a figura do narrador distingue-se pelo modo como monopoliza o discurso comunicando a(s) experiência(s) do medo de modo a captar a benevolência do seu auditório. Sendo o narrador “uma invenção do autor” (Lopes & Reis, 2000: 257), a presença de um narrador autodiegético é fundamental para manipular o curso da narrativa, fortemente condicionado pela defesa de um argumento quanto à verdadeira definição do medo. Este texto elucida a capacidade de o autor se socorrer de artifícios para compor o acto narrativo e, além disso, acaba por ser um elogio da retórica enquanto formulação de um discurso “partidário” que visa desenvolver justificações em torno de um argumento para o credibilizar. “La peur” recupera, ainda, o prazer associado ao acto de ouvir/contar histórias lançado no texto inaugural da colectânea ao associar o acto de contar histórias à tentativa de dissipar o medo: “Je racontai des histoires, et je parvins à calmer à peu près tout le monde” (Maupassant, 1999: 82).72

À semelhança do que verificamos em “La peur”, “Menuet” também se inicia com uma longa introdução onde Jean Bridelle visa captar a benevolência do seu auditório. Também aqui se cria uma atmosfera de mistério associada à presença do estranho quase indefinível:

[...] certaines rencontres, certaines choses entr’aperçues, devinées, certains chagrins secrets, certaines perfidies du sort, qui remuent en nous tout un monde doloureux de pensées, qui entrouvrent devant nous brusquement la porte mistérieuse des souffrances [...] nous laissent à l’âme comme une trainée de tristesse, un goût d’amertume, une sensation de désenchantement [...] (Maupassant, 1999: 66).73

Estão criadas as condições para que o auditório anseie pela história sempre pautada pelo registo latente da ambiguidade “il se peut que mon imagination seule ait fait les frais de mon attendrissement” (1999: 67).74 É a ambiguidade que permite um final aberto ao texto: depois da narrativa encaixada surge a interrogação que sugere a presença do elemento estranho “spectres falots” (73)75 e, por isso, criam-se condições para instaurar um debate “Vous trouverez cela ridicule, sans doute ?” (74).76 Esta pergunta constitui uma interpelação directa ao auditório e, por contaminação, ao leitor que se vê projectado para o universo ficcional.

III. Conclusão: a unidade da obra

Um dos aspectos a salientar na arquitectura narrativa é o modo como as composições encaixadas têm origem. Enquanto em “La peur” a narrativa encaixada surge de uma não coincidência de opiniões relativamente à definição do medo, “Ce cochon de Morin” parte de uma pergunta: “Pourquoi, diable, n’ai-je jamais entendu parler de Morin sans qu’on le traitât de ‘cochon’ ?” (Maupassant, 1999: 27).77 A narrativa encaixada dá a resposta sem nunca descuidar os artifícios narrativos e retóricos adequados, nomeadamente a ironia e a propensão para a ambiguidade. Tal como acontece em “La bécasse”, o entusiasmo demonstrado pelo narrador antes de começar a contar a história: “Alors Labarbe se frotta les mains et commença son récit” (1999: 28)78 harmoniza-se com o prazer do acto de contar presente nos contos.

A divisão do texto em partes contribui para distinguir os momentos da acção pois, na segunda parte, a aversão a Morin sempre acompanhado pela sua alcunha “cochon”, cede lugar à compreensão e simpatia do narrador e afirmações como “Sacre-bleu, je commence à comprendre Morin” (35)79 ou “Mais c’est une gaillarde, cette fille. Je comprends que ce cochon de Morin se soit trompé” (37)80 ilustram essa mudança. Na oposição proposta no texto entre “ce cochon de Morin” e “le beau Labarbe” (37)81 reside a premissa para a argumentação desenvolvida pela capacidade do narrador para persuadir Mlle. Henriette Bonnel. É louvável o modo como se encena a oposição entre uma certa ingenuidade de Morin, incapaz de controlar os seus primeiros impulsos, e a arte retórica de Labarbe apto a inverter a acusação de Mlle. Henriette Bonnel através de uma argumentação exímia: “ce serait pour moi un brevet, un titre, une gloire, que d’avoir voulu vous violenter. Parce qu’on dirait, après vous avoir vue : « Tiens, Labarbe n’a pas volé ce qui lui arrive, mais il a de la chance tout de même »” (38).82 Ao nível da composição narrativa, o narrador apresentado detém plena autonomia perante o relato da história: num primeiro momento há um diálogo; posteriormente surge a narrativa encaixada que responde à pergunta inicial e, dentro desta, desenvolve-se uma longa argumentação que perverte a verdade inicial (Labarbe diz amá-la e diz ainda não conhecer Morin (39). A inculcação da mentira impõe a necessidade de recorrer a verbos performativos, cuja força ilocutória pretende convencer: “je vous jure” (40).83

A estrutura dos textos é complexa e chama a atenção sobre si mesma exibindo a sua ficcionalidade. As narrativas encaixadas, o ardiloso esquema de níveis narrativos alternantes e o misto de narradores que operam dentro das camadas narrativas esculpidas conferem-lhes diversidade e, ao mesmo tempo, criam um sentido de unidade assente no elogio do acto narrativo. Contes de la bécasse compõe-se a partir da reivindicação de uma classe narrativa (contes) que se revela complexa ao ponto de poder constituir-se como um género afastado da concepção generalizada. Se pensarmos que “o conto esteve originalmente ligado a situações narrativas elementares” (Lopes & Reis, 2000: 79) podemos dizer que aquilo que encontramos na obra em apreço é já uma forma muito desenvolvida do género. Para esta afirmação contribui um complexo esquema constituído por diversos níveis narrativos que atribuem a cada narrativa o seu carácter de “entidade estruturada” (2000: 297), congeminando uma composição consolidada de conjunto ou cenário narrativo. As categorias da narrativa surgem complexificadas, nomeadamente no âmbito da concentração da acção e esta, por sua vez, é influenciada pelo conjunto de narrativas encaixadas que a constituem. Apesar da ausência de unidade temática, parece-nos evidente que a unidade reside no elogio do acto narrativo nascido em “La bécasse”, fio condutor estratégico que cria o contexto para a totalidade das narrativas, com a instituição de um ritual contístico no seio de um auditório. Aqui está sediada a raíz da obra, desenvolvendo cada um dos textos como ramificação e recorrendo a artifícios de composição dos mesmos enquanto ficção.

O autor literário/escritor, aquele que “trabalha a sua palavra” (39) num sentido inventivo, constrói um universo diegético capaz de abarcar diversos narradores construídos de modo a orquestrarem o curso das narrativas encaixadas. A representação do acto de contar é manipulada ao ponto de parecer que “le lecteur ne s’aperçoit jamais que ce qu’il lit est écrit” (Juin, 1999: 18).84 O título da obra instala uma categoria genológica que se metamorfoseia, em cada narrativa, com artifícios que se abrem a uma estética permeável e manipulável não estanque. O elogio do acto narrativo emerge da utilização consciente de todos os recursos retóricos disseminados em cada texto: o jogo da ficção une-se a uma concepção de conjunto que permite ao autor inserir temas distintos sob o falso pretexto da caça. O título apenas serve para consolidar o artifício inerente à estratégia narrativa, cuja espiral temática faz relevar o papel soberano do artesão narrador.

Falamos na unidade da obra na medida em que todos os textos agrupados sob o título Contes de la bécasse são, de facto, contes enquanto “construções literárias ao redor dum ponto” (Ferreira, 1992: 19) que se traduz na construção pensada da colectânea: “le recueil n’est pas la simple réunion a posteriori de textes qui ont vu le jour dans la presse et dont le nombre permet de fair un volume” (Grandadam, 2007: 112).85 A sedução da leitura de Maupassant concentra-se na capacidade de artesão com que entretece a linhas de ouro a sua produção escrita e como, nesse tecer, se denotam os fios da construção ficcional latente ao elogio do acto narrativo.

Bibliografia

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POE, Edgar Allan. (1842). Nathaniel Hawthorne: Twice-Told Tales. Graham’s Magazine, pp. 298-300.

1Não adoptamos o Acordo Ortográfico de 1990 na redacção deste artigo.

2“A arte de Maupassant é criar a ilusão de que a escrita pode resumir-se ao contar e ser assim contador de histórias no verdadeiro sentido do termo” (todas as traduções são nossas, salvo indicação em contrário).

3Utilizaremos o termo francês conte por adequação à obra em apreço.

4Seleccionámos um corpus de textos dentro da colectânea, nomeadamente: “La bécasse”, “La folle”, “Menuet”, “La peur”, “L’aventure de Walter Schnaffs”, “En mer” e “Ce cochon de Morin”. Ainda dentro do corpus seleccionado serão recolhidos, somente, alguns elementos que nos permitam ilustrar os argumentos a desenvolver.

5“[…] a correspondência do autor confirma essa ideia: muitas cartas testemunham uma atenção vigilante ao lugar que certos contos devem ocupar no volume e provam que as colectâneas não são apenas uma simples colecção de textos que apenas o acaso reuniu […]. O conjunto é conscientemente orquestrado pelo escritor […]”.

6“ […] a forma narrativa, então, significa a fissura básica na imaginação artística […]. Ela permite que o autor expresse estruturalmente o dilema da mente criadora, apanhada entre o desejo do artefacto totalmente formado, uma entidade que indicia certeza e a consciência da prevaricação inerente a cada criação”.

7A este respeito leia-se o seguinte: “[…] the framing of a tale permits Maupassant to elucidate rhetorically the properties and potential effects of stories” (Moger, 1985: 323).

8“É em 1883 que Guy de Maupassant assina um contrato com Édouard Rouveyere e G. Blond para a edição de uma recolha de contos intitulada Contes de la bécasse, esse contrato determina que o volume deveria ser da mesma dimensão de Madame Fifi, […] o que conduzirá o autor a juntar aos textos já previstos mais dois contos: Saint-Antoine e L’Aventure de Walter Schnaffs […]. O sabor das coisas importa-lhe mais do que a querela das ideias. Nada demonstra melhor isso do que o que Maupassant escreve para o lançamento de Contes de la bécasse. Aí podemos ler: o que distingue particularmente esta última obra do autor de La Maison Tellier e de Une vie é a alegria, a ironia engraçada. O primeiro relato do livro, Ce cochon de Morin, não pode deixar de estar ao lado de Boule de suif. Os contos que se seguem são amostras bastante diversificadas do bom humor sarcástico do autor”.

9A primeira alteração diz respeito à divisão em dois textos do conto “La folle” […] Podemos tirar partido da transformação do conto destinado à imprensa num texto com função inaugural […] é também possível pensar que à data da publicação de “La folle”, em Le Gaulois, Maupassant que já havia publicado treze dos quinze relatos da colectânea, tinha antecipado o aparecimento do volume e sabia que a primeira parte desse conto iria constituir o texto inicial de Contes de la bécasse”.

10“e aqui está o que conta M. Mathieu D’Endolin”.

11“aqui estão algumas dessas histórias”.

12A este respeito leia-se o seguinte: “[…] l’unité énonciatrice n’est pas exclusive d’une unité thématique qui transcenderait les multiples arguments des différents contes…”, (a unidade enunciadora não é exclusiva da unidade temática que transcende os múltiplos argumentos dos diferentes contos...) (Grandadam, 2007: 196).

13“as galinholas lembram-me”.

14“espírito letrado”.

15“breves contos travessos e também histórias verdadeiras chegadas com a sua comitiva”.

16“uma história”.

17“o relato fiel da sua jornada”.

18“aventuras implausíveis”.

19“existia na casa um velho costume chamado conto da galinhola”.

20Os prefaciadores de Contes de la bécasse são distribuídos em quatro comentarios críticos, três (assinados por L. Forestier, R. Bismut e H. Lasalle) vêem no título uma promessa de unidade narrativa, promessa rapidamente defraudada por H. Lasalle porque o título, em substância, enquanto motivador dum certo horizonte de expectativa – a caça – suscita uma leitura decepcionante”.

21“e todos, atónitos, mas reciprocamente crédulos, extasiavam-se”.

22“todos se calavam com a ansiedade da espera”.

23suscitar o humor e a veia contista dos seus anfitriões.

24o gozo estético, um prazer oral

25“breves contos travessos”.

26“histórias verdadeiras”.

27“relato fiel da jornada”.

28“aventuras”.

29“história”.

30“narrativa”.

31“anedota sinistra de guerra”.

32“narrativas”.

33(“aqui estão algumas dessas narrativas”).

34A este respeito leia-se: “le premier élément du conte, c’est son caractère oral [...]” (a primeira característica do conto é o seu carácter oral) (Lampert, 1973: 3279).

35a passagem da oralidade à escrita é sem dúvida uma das características mais fortes do género”.

36Tal como defende Carlier: “à l’intérieur du texte écrit, prend la parole et fait un récit. Ce personnage extérieur à la fiction est indispensable au conte”, (“no interior do texto escrito toma a palavra e faz uma narrativa. Essa personagem exterior à ficção é indispensável ao conto”) (Carlier, 1998: 49).

37“lemos”.

38“pobre homem queimado”.

39a traineira partiu de novo, arrastada no dorso das ondas, agitada, sacudida, inundada, esbofeteada pelas ondas gigantes, mas enérgica, apesar de tudo, acostumada a essas tempestades”.

40“ele começou a cortar-se a si próprio. Cortou gentilmente, reflectindo, cortando os últimos tendões com a lâmina afiada”.

41 “o enterro do braço separado”.

42“o mais infeliz dos homens”.

43“Se ao menos fosse prisioneiro!”

44o prazer de contar”.

45“Usando o mesmo artifício narrativo (tornar incerta a identificação do narrador) e fazendo de modo estranho a fusão de autor e narrador, além de uma narrativa em abismo um tanto ilusória, ele arremessa um instante de perturbação no espírito do leitor”.

46“Sacrificando voluntariamente a unidade possível de Contes de la bécasse – o motivo da caça que o título poderia ter supervisionado numa coerência sem falhas, Maupassant prefere manter cinco dos quinze contos para lhes juntar outros temas: a guerra e as forças negras que ela pode desencadear, o destino de uma criança nascida dos acoplamentos da aventura, o amor desmesurado e não recíproco [...]”.

47“as galinholas lembram-me uma anedota sinistra de guerra”.

48“lembro-me disso como se fosse ontem”.

49 “anedota sinistra”.

50“louca”.

51“que se passaria naquela alma desesperada”?

52“estaria a pensar nos mortos? Sonhou tristemente sem recordações exactas?”

53“uma cabeça morta”.

54“e bruscamente a recordação da louca bateu-me no peito como um murro […] tinha a certeza, claro, vos digo, que reconheço a cabeça dessa maníaca miserável”.

55“E de repente compreendi, adivinhei tudo, eles abandonaram-na neste tapete na floresta fria e deserta; e, fiel à sua ideia fixa, ela deixou-se morrer sob os raios e leves flocos de neve e sem mexer o braço ou a perna”.

56“mantive esta ossada triste”.

57A este respeito veja-se: (Furtado, 1980).

58Relativamente a este aspecto notemos o seguinte: “a tensão mantem [-se] muito para além da ocorrência dos factos, porque o carácter de ambiguidade, de hesitação entre o racional e o sobrenatural, que determinam o fantástico, não foi anulado pelo narrador no acto de enunciação que actualiza e transmite aos narratários e aos leitores […]” (Diogo, 1994: 31-32).

59“o medo […] é qualquer coisa terrível, uma sensação atroz, como uma decomposição do ânimo, um espasmo terrível do pensamento e do coração, cuja lembrança por si só dá arrepios. Mas isso não acontece quando se é corajoso, nem antes de um ataque ou de uma morte inevitável, nem antes de todas as formas conhecidas de perigo: isso acontece perante certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas diante de riscos vagos. O verdadeiro medo é qualquer coisa como uma remanescência dos terrores fantásticos do passado. Um homem que acredita em fantasmas e imagina ver um fantasma à noite deve experimentar o medo em todo o seu horror terrível”.

60“homem de semblante queimado”.

61“surpreendido por um fenómeno inexplicável”.

62“tambor misterioso”.

63“rufo fantástico”.

64“a morte paira sobre nós”.

65“o verdadeiro medo, o medo hediondo”.

66“a escuridão era profunda. Não via nada à minha frente”.

67“eu sentia que um terror profundo prendia aquelas pessoas”.

68“qualquer coisa invisível, desconhecida, horrível sem dúvida”.

69“e juro-vos que no fracasso do golpe da espingarda que eu não esperava, estava de tal maneira angustiado do coração, do ânimo e do corpo que me senti desmaiar, prestes a morrer de medo”

70“narrador”.

71“contra a minha vontade um grande calafrio me percorreu entre os ombros”.

72“contei as histórias e consegui acalmar um pouco todos”.

73“alguns encontros, algumas coisas sugeridas, decifradas, alguns desgostos secretos, certas perfídias do destino, que nos despertam em nós todo um mundo de lembranças dolorosas que entreabrem diante de nós bruscamente a porta misteriosa dos sofrimentos [...] deixando-nos na alma um rasto de tristeza, um sabor amargo, uma sensação de desencanto [...]

74“pode ser que a minha imaginação o tenha feito às custas da minha compaixão”.

75“espectros grotescos”.

76“acharão isso ridículo sem dúvida”.

77“porquê, diabo, nunca falei de Morin sem o tratar por porco?”

78“então Labarbe esfrega as mãos e começa a sua narrativa”.

79“com os diabos, começo a entender Morin”.

80“então está em muito boa forma essa rapariga. Compreendo que esse porco do Morin tenha sido enganado”.

81“o belo Labarbe”.

82isso é para mim um diploma, um título, uma glória, ter desejado violar-vos. Porque dirão, depois de vos terem visto: Aqui, Labarbe não quis o que lhe está a acontecer, mas ele teve a oportunidade na mesma”.

83“juro-vos”.

84“o leitor jamais se apercebe que aquilo que lê é escrito”.

85“a recolha não é a simples reunião, a posteriori, de textos publicados previamente na imprensa e onde o título permite fazer um volume”.

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